quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Como os nossos bisavós faziam

Dar mais poder policial ao Estado brasileiro, conforme vêm sugerindo novos projetos que tramitam no Legislativo, não é um avanço, mas um oportunismo obscurantista

Rodrigo Elias
18/2/2014

  • Manifestantes pulam a roleta do metrô, no Rio de Janeiro / Foto: Mídia Ninja, 2014
    Manifestantes pulam a roleta do metrô, no Rio de Janeiro / Foto: Mídia Ninja, 2014
    É compreensível que as legislações mudem ao longo do tempo. Afinal, se vivemos dentro da história, deve ser natural que as sociedades se transformem e, com elas, suas normas jurídicas – que são regulações socioculturais impostas ao conjunto ou a uma parcela dos indivíduos, a cada formação histórica, com a anuência dos grupos hegemônicos. Esta compreensão básica pode ser útil para o entendimento de realidades mais concretas e mais próximas da nossa própria vida, assim como para observar certos arcaísmos entranhados na direção do Estado brasileiro e nos veículos tradicionais de imprensa.
    As atuais tratativas do Congresso Nacional, em parceria com o Executivo federal e com alguns governos estaduais que lucram financeiramente e politicamente com o estado policial (que não sabe investigar e não consegue aplicar as leis que já existem), não são apenas o lado mais visível de uma tradição autoritária verde-e-amarela. Trata-se de atitude reacionária.
    É possível observar, ao longo da tradição escrita no ocidente, dois tipos básicos de mutação legislativa: um que podemos classificar como tradicional e outro, moderno. Estes tipos não estiveram sempre separados no tempo, e pode-se dizer mesmo que dessas duas matrizes decorrem algumas formas híbridas atualmente em vigor.

    As leis de Deus
    A forma mais tradicional procede, logicamente, de uma concepção tradicional de mundo, dentro da qual a própria origem da sociedade é atribuída à vontade divina. Esta forma tradicional é essencialmente religiosa e finalista: a trajetória da humanidade é direcionada para um objetivo transcendental a ser realizado em algum futuro, que pode ser o cumprimento da vontade de uma divindade ou a salvação de um grupo antes da consumação dos tempos.
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    Os defensores dessa matriz escatológica enxergam a realidade social como sendo idealmente homeostática, isto é, fechada, autossuficiente e imutável. O sucesso dessa matriz é relativamente comum em contextos com pouca difusão da palavra escrita, o que favorece uma percepção “presentista” do tempo, uma vez que existe uma dificuldade maior em fixar o fluxo do devir, portanto, a diferenciação entre passado e presente. Entretanto, por ser uma concepção que não dá conta da realidade (todas as sociedades se transformam, logo, são históricas), os grupos dominantes nestas sociedades precisam intervir no mundo com suas próprias mãos e fazer leis (boa parte da celeuma medieval e moderna sobre o livre-arbítrio eram tentativas de justificar o injustificável, ou seja, a intervenção humana em um mundo que já seria ordenado por uma força divina).
    Decorre desta concepção litúrgica da vida social, como se pode supor, uma postura conservadora e moralizante dos seus principais grupos de interesse, que costumam reconhecer a fonte legiferante apenas no topo da formação social (um sacerdote ou uma casta sacerdotal, um rei ou um pequeno conjunto distinto por sua ancestralidade, um centro estatal inabalável ou os seus porta-vozes).
    Além da postura exclusivista no entendimento da legitimidade jurídica, é comum que a legislação daí decorrente se divida em dois eixos básicos: a normatização dos comportamentos, tendo em vista uma observação rígida dos costumes tradicionais, e a proteção da fonte do Direito – o rei, a instituição eclesial, o Estado (não era por acaso que, ao longo do Antigo Regime, ser homossexual era tão perigoso quanto conspirar contra a coroa). Nas formações sociais inseridas nesta matriz jurisdicional tradicional, a legislação moral e de proteção às instituições de poder tende a ser abundante (seu objetivo é congelar o todo social), particularista (é direcionada a grupos específicos), emergencial (procura manter a sociedade em um trajeto transcendentalmente definido, corrigindo pontualmente os desvios) e, em geral, resultado de atos isolados de vontade (sua motivação é privada).
    Black Blocs protestam em São Paulo / Foto: Mídia Ninja
    Black Blocs protestam em São Paulo / Foto: Mídia Ninja

    Aos nossos olhos (que poderíamos, com algumas reservas, chamar de “modernos”), a legislação do Antigo Regime português – nossa realidade legislativa antiga mais próxima – pode parecer confusa, contraditória, socialmente direcionada e vingativa; o preâmbulo das leis portuguesas do período, sobre qualquer matéria, confirma o seu caráter episódico: os monarcas justificam as leis a partir da exposição de um caso específico, ou um conjunto específico de casos recortados no tempo e no espaço. Tudo isso, entretanto, faz sentido dentro de uma concepção tradicional de mundo, que concebe a lei como instrumento necessário para adequar o conjunto da sociedade a um estado social e cultural inalterado, supostamente de acordo com a vontade daquele ente metafísico que criou aquela mesma sociedade, assim como preservar o lugar de preeminência de quem legisla (o mesmo rei fazia a lei e julgava os desviantes).
    Entre os séculos XVII e XVIII, entretanto, uma concepção eminentemente laica da sociedade se desenvolveu, primeiramente entre grupos letrados privados e, posteriormente, nas fileiras das próprias formações estatais (Reinhart Koselleck descreveu este processo mais geral, a expansão de uma nova racionalidade laica, de maneira bastante concisa em Crítica e crise, de 1959). Este processo, por diversos motivos (lembremos que os principais teóricos do Direito Natural eram protestantes), não se desenvolveu ao mesmo tempo em todos os estados ocidentais, mas foi especialmente visível na Inglaterra (onde assumiu feições arquetípicas), na França e no norte da Europa, especialmente nos Países Baixos.
    Ao longo deste período, vê-se uma paulatina reconfiguração do padrão das interações interindividuais na esfera pública, ao mesmo tempo em que se observa uma inversão cosmológica, processo identificado por Max Weber e discutido de forma profunda por Marcel Gauchet. Nessa inversão, a entidade metafísica que rege a ordem do mundo (Deus) é deslocada para o interior das consciências individuais, passando a ocupar unicamente o espaço privado (o indivíduo ou a congregação), deixando o mundo natural e a esfera pública livres para a intervenção direta do homem, intervenção que deve ser revertida no conhecimento do real e no benefício dos homens nesse mesmo mundo tangível – a sexta das Cartas inglesas de Voltaire, de 1734, chamada “Sobre os presbiterianos”, dá, ao tratar da Bolsa de Londres, uma lúcida mostra dessa transformação cultural. Assim, ciência e política aparecem como campos de ação autossuficientes ao longo da Época Moderna, e o campo do Direito, logicamente, beberá desta nova percepção do mundo – Maquiavel, Hobbes, Galileu, Grócio, Newton, Puffendorf, Hume, Montesquieu e Condorcet são eventos em um contexto amplo no qual se consolida uma nova cosmogonia, que pode, inclusive, quando se trata de ordenar juridicamente a vida dos homens, prescindir de Deus (formulação hipotética feita pelo holandês Hugo Grócio em 1625).

    Vargas, o pai das nossas avós
    Vargas, o pai das nossas avós
    O Direito moderno
    É neste contexto, portanto, que vemos emergir um novo padrão jurisdicional do ocidente. As leis não são mais formas de adequar o mundo aos desígnios do Criador ou vingança de um deus punitivo, mas instrumentos emanados da sociedade para a proteção da própria sociedade e para a garantia daquilo que seus membros ativos entendiam por felicidade (isto estará explicitamente formulado nos documentos fundadores dos Estados Unidos, a partir de 1776, mas já frequentava a legislação inglesa do século anterior). Dentro desta concepção moderna de sociedade, as leis devem ser concebidas como atos racionais de regulamentação da vida social e devem obedecer ao princípio da razoabilidade imanente tanto no processo de sua criação (não podem mais ser atos episódicos de vontade socialmente dirigida) quando na sua finalidade (não devem mais ter o caráter de cumprimento de um sentido transcendental ou religioso da trajetória humana). Em outros termos: leis não devem ser fruto de comoção, não devem ter finalidade moralizante e não podem ser resultado exclusivo da vontade de um grupo privilegiado.
    Ao longo do século XIX, os desdobramentos desta concepção propriamente humanizada da existência social (a sociedade – logo, o Estado – existe por vontade dos homens e para realizar, nesta vida, a felicidade dos próprios homens enquanto seres finitos) acabou se impondo, ao menos enquanto forma de estruturação dos aparatos estatais, sob forma do fenômeno constitucional, em outras regiões  – inclusive naquelas tradicionalmente apegadas a uma concepção radicalmente metafísica (cristã) da sociedade. Essas áreas precisavam se incorporar, por exigências econômicas mas também jurídicas (e, assim, ideológicas, diria Marx), a um sistema racionalizado dirigido por estados no qual este processo já havia se verificado. É justamente neste momento que vemos, por exemplo, o surgimento das constituições ibéricas – como a espanhola, a portuguesa e a brasileira. Estes estados, que agora também precisavam se justificar internamente perante parcelas letradas capazes de discutir a existência social em termos não religiosos, precisaram adequar seus processos legislativos (a criação de leis) às novas normas reconhecíveis por uma elite letrada situada fora do âmbito do Estado (basta lembrar que a imprensa teve um alcance explosivo, progressivo e irreversível a partir de 1750, tornando os aparatos de censura virtualmente inócuos na virada do século).
    Entretanto, uma nova mentalidade não surge por decreto, e é precisamente aí que vemos surgir as formas híbridas. Os desenhos jurídicos que sustentam os estados criados à força nas franjas do mundo constitucional (ou propriamente político, em um sentido nosso contemporâneo) carregam em suas tintas a herança de uma visão tradicional, bem como funcionam para a simples legitimação (externa e interna) de uma concepção tradicional da função do Estado e, portanto, da manutenção do antigo “espírito das leis”.

    D. Pedro I, monarca que outorgou constituições no Brasil (1824) e em Portugal (1826)
    D. Pedro I, monarca que outorgou constituições no Brasil (1824) e em Portugal (1826)
    Trajetória do Estado constitucional
    Assim, vimos o Estado constitucional brasileiro surgir, católico, em 1824, com uma legislação outorgada por um imperador e com o dispositivo do Poder Moderador; assistimos a uma mudança constitucional em 1891, mas isso não impediu o uso discricionário do aparato de força estatal contra as dissidências ideológicas no momento imediatamente posterior (os catarinenses devem saber muito bem disso); o Estado Novo, testemunhamos, também teve a sua Constituição, mas nasceu com um oportunista Plano Cohen e concebeu a sociedade como uma família a ser dirigida por um pai dos pobres; a ditadura que nos é mais próxima, da qual lembramos, iniciada em 1964 com o apoio da Igreja e das nossas avós, também não desprezou a legitimação constitucional, e as maiores atrocidades contra os opositores do regime conviviam com uma aparência de normalidade jurídica, cuja expressão maior são os Atos Institucionais; escrevemos uma nova Carta em 1988, dita “Cidadã”, prolixa e até agora muito distante de um cumprimento muito básico, protetora, entretanto, no que diz respeito às regulações econômicas, de um grupo bastante específico (a taxação sobre as grandes fortunas está lá, mas nunca foi regulamentada); com esta mais nova Constituição convive o estatuto da Medida Provisória, usada ao gosto da prática legislativa tradicional, resguardando o Estado e atendendo algumas confrarias; na Cidadã também temos, entre outros artigos que se assemelham aos mais antigos regulamentos morais, a definição do que o Estado entende por casamento – é claro, uma definição heteronormativa, a união entre um homem e uma mulher, como manda Deus; a grande pérola, entretanto, é o artigo 148, que estabelece o empréstimo compulsório – a medida tomada por Fernando Collor em 1990, com o confisco das cadernetas de poupança, estava garantida pela Carta de 1988, e o instrumento ainda está lá.
    A presença de arcaísmos autoritários em estruturas modernas e laicas de Estado não é, obviamente, uma especificidade brasileira – os Estados Unidos, nos últimos anos, têm dado mostras do mais genuíno arbítrio jurídico em favor de alguns grupos e dos controladores do Estado, o que podemos ver do PATRIOT Act republicano (que, entre outras coisas, normaliza a tortura de suspeitos de terrorismo) às leis antiterrorismo assinadas na atual gestão democrata (entre elas, a possibilidade de prender um suspeito por tempo indeterminado sem julgamento). Entretanto, isso ocorre em meio a uma curva descendente do interesse da população americana por assuntos que envolvem a coisa pública, vácuo no qual aquele Estado e grupos de interesse a ele ligados passam a ocupar. Nosso caso, entretanto, é mais trágico.
    Além de obedecer a uma concepção de mundo que vem caindo em desuso em sociedades que aprenderam a ser capitalistas desde o século XVII, a criminalização moralizante e preventiva das oposições mais radicais ao atual desenho estatal brasileiro ocorre justamente no momento em que a sociedade está aprendendo, por conta de seu maior acesso à informação, a lutar por um Estado e por um arcabouço jurídico que funcionem em benefício do conjunto da população. Proteger a dignidade humana é obrigação de todos, mas dar mais poder policial ao Estado brasileiro (com a ajuda de uma imprensa parceira, inclusive economicamente, deste Estado) na atual conjuntura não é apenas um exemplo rasteiro de oportunismo. É lançar sobre o país, mais uma vez, o manto do nosso velho conhecido obscurantismo. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Carta Aberta a Prefeitura de #Lorena




Lorena, 04 de novembro de 2013.

Assunto: Reclamação Rua Antonino Rosa Júnior


Exmo(s). Senhor (es),

Sou jornalista, historiador e professor. Recentemente, no mês de junho mudei-me de São Paulo para Lorena (depois de dez anos vivendo nesta capital) acreditando que aqui, gozando da boa qualidade de vida e tranquilidade que a cidade oferece, poderia melhor dar continuidade às minhas pesquisas em História Social, realizadas no âmbito da Universidade de São Paulo. Escolhi como minha residência uma rua próximo ao centro da cidade por entender que a grande oferta de serviços e a proximidade com o centro seriam-me de grande utilidade. A casa que aluguei situada na Rua Antonino Rosa Júnior pareceu-me ideal para meu escritório e minha biblioteca, e muito agradável por contar inclusive com uma varanda. Eu estava satisfeito com minha escolha, com a mudança de cidade, que inclusive me beneficiou com maior agilidade em minhas pesquisas. Entretanto no último mês de outubro, fui informado que haveria a mudança no fluxo de trânsito de carros na rua Comendador Custódio Vieira (rua comercial perpendicular a minha rua), e que duas quadras desta rua passariam a ter apenas uma mão. Estranhei essa mudança já que o impacto da mudança me parecia pouco significativo. Quando a mudança finalmente aconteceu, percebi que para meu espanto o fluxo do trânsito intenso da rua Comendador Custódio Vieira foi todo direcionado para a minha rua, que antes tranquila (por ser apenas residencial) passou a ter um trânsito intenso, com poluição sonora e fuligem proveniente dos carros e caminhões. Por ser inclusive uma rua de paralelepípedos agora somos submetidos a um barulho constante de carros além de uma grande trepidação que sacode janelas e vidros. 

Diante deste fato, gostaria de comunicar que a decisão talvez bem intencionada de melhorar o fluxo de carros na rua Comendador Custódio trouxe grande impacto a vida e ao bem-estar dos moradores da Rua Antonino Rosa Júnior, e ruas adjacentes, que agora são submetidos a uma barulho constante - que comprovadamente possuem consequências graves para saúde - e a poluição sonora e atmosférica. Já conversei com vários vizinhos e os impactos negativos vão desde dificuldade para dormir, nervosismo, vidros trincados - e no meu caso particular, dificuldades para me concentrar e dedicar-me ao meu trabalho. Inclusive o problema é agravado pelo fato que os motoristas passam na rua em grande velocidade, colocando em risco as crianças da vizinhança que costumavam brincar na rua. O impacto de uma mudança aparentemente simples causou um grande impacto negativo na vida de centenas de pessoas. 

Considero que a mudança no trânsito na Rua Comendador Custódio não foi significativa ao ponto de justificar tantos problemas causados aos moradores da Rua Antonino Rosa Júnior, e para as ruas adjacentes. Penso, mesmo, assim como outros cidadãos da região, que a mudança foi totalmente inútil. Além disso, considero que pelo fato de que ninguém foi consultado a mudança deu-se de forma autoritária constituindo um verdadeiro desrespeito aos cidadãos. Considero que uma cidade moderna e com uma gestão eficiente deve priorizar o bem-estar de seus cidadãos, e que como indicam as ultimas pesquisas em gestão urbana a mobilidade urbana deve estar pautada em transporte público e transporte sustentáveis como bicicletas etc. Priorizar o sistema individual motorizado é uma atitude pouco eficiente, contraproducente, e que traz um impacto negativo importante aos cidadãos (aqueles não motorizados como também para os motorizados.).(Como pode ser visto por exemplo aqui. )

Assim sendo gostaria de pedir providências para que resolvam o problema de centenas de cidadãos e moradores que não podem ter o seus direitos a paz e tranquilidade negados somente para que duas quadras de uma rua comercial tenham um melhor fluxo de automóveis. 


Sem mais,

Augusto Patrini Menna Barreto Gomes
historiador, jornalista e professor

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Por que o PT fracassou? Resposta a Emir Sader



Por Bernardo Corrêa em 06 de novembro de 2013

O Sr. Emir Sader desde a chegada do PT ao governo do Brasil tem se dedicado a defender o lulismo pela esquerda e da esquerda. De maneira habilidosa e, muitas vezes cínica, em sua análise justificativa as políticas de caráter liberal e pró-sistêmicas são colocadas como “necessárias” frente à herança neoliberal. As políticas sociais focalizadas são envernizadas de um vermelho ofuscante que esconde a ausência de medidas estruturais que ataquem a raiz da desigualdade social brasileira na política econômica do PT.
Recentemente lançou um artigo sinuoso intitulado Por que a extrema esquerda fracassouno qual sustenta que a “extrema” esquerda latino-americana tem sido denuncista e estaria isolada tendo como inimigos fundamentais os governos “progressistas” da América Latina, em especial no Brasil. Sua tese está assentada em três pilares: a) A conjuntura é desfavorável, marcada pela herança do neoliberalismo, logo a tarefa central da esquerda seria a luta antineoliberal; b) O governo do PT seria parte de um bloco antineoliberal no continente, criticá-lo seria fazer o jogo da direita; c) a política do PSOL (e da extrema esquerda) seria essencialmente moralista, sem um projeto alternativo e seu sucesso deve ser medido pelo termômetro eleitoral.
Em primeiro lugar, cabe fazer a diferenciação (que o Sr. Sader faz questão de não fazer) entre os governos da América Latina, produtos de situações distintas, com evoluções distintas e com direções políticas distintas. Para Sader, Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Brasil são produtos da mesma motivação antineoliberal o que temos acordo, no entanto, para nós as respostas dadas e os blocos de poder constituídos são absolutamente opostos em algumas comparações.
Se compararmos a postura do governo brasileiro frente às oligarquias agrárias e o governo venezuelano, por exemplo, veremos que enquanto Chávez editou a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário em dezembro de 2001 e apoiou-se na mobilização popular para derrotar o golpe que as oligarquias tentaram lhe impor em abril de 2002, Lula nomeou, no primeiro ano de seu mandato, um representante do latifúndio brasileiro, Roberto Rodrigues, para ser Ministro da Agricultura. Mais que isso, aliou-se política e economicamente às principais representações das oligarquias brasileiras como Sarney, Renan Calheiros e Collor de Mello para implantar um modelo de desenvolvimento agro-exportador de commodities no qual o agronegócio é o eixo. Não houve golpe, assim como não houve nenhum enfrentamento à concentração de terras no Brasil.
Declarações recentes do Movimento Sem Terra (MST) revelam ainda que a presidente Dilma não desapropriou nenhuma área para Reforma Agrária em 2013. Segundo a direção nacional do movimento “em 2010, prestes a deixar o Palácio do Planalto, o então presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva assinou 158 decretos de desapropriação de imóveis rurais. No ano seguinte, a afilhada política dele baixou a marca para 58. Em 2012, ela manteve o freio e reduziu para 28 decretos”. Esta é a realidade concreta em que estamos.
Podemos ir mais longe e perguntar: por que não foi enfrentada a dívida pública no Brasil como no Equador? Será que faz parte da luta antineoliberal entregar quase metade do orçamento da União aos serviços da dívida, financiando os banqueiros sem sequer auditá-la? Ou por que os indígenas estão sendo expulsos de suas terras no Brasil para viabilizar grandes obras de altíssimo impacto ambiental enquanto na Bolívia os povos originários decretaram seu Estado Plurinacional?
Muito mais parecidos estão Brasil e Argentina em sua política, mas nas eleições recentes da Argentina, na qual a “extrema” esquerda teve um crescimento importante, Emir Sader prefere não falar. Fala dos elementos progressivos da política externa do governo brasileiro (reconhecidos pelo PSOL, como no caso de Honduras), mas cala sobre a exportação dos interesses econômicos de construtoras como Odebrecht e Camargo Correa para os países mais pobres da América Latina, atuando como defensor internacional dos interesses da burguesia nacional. Cala também sobre a exportação da política “light” do PT e do Foro de São Paulo a Ollanta Humala no Peru, retirando o conteúdo de enfrentamento tão necessário àquele país, para garantir um ambiente de estabilidade para os grandes negócios capitalistas na região. Esconde propositalmente que quando Chávez e o povo venezuelano derrotaram o golpe da direita, o PT não quis trazê-lo ao Fórum Social Mundial em 2003. Aliás, Chávez naquela ocasião foi a Porto Alegre por convite da então Deputada Federal Luciana Genro e dos “radicais do PT”, futuros dirigentes do PSOL. Lula foi a Davos dar conselhos aos organismos multilaterais do capital.
Sader rapidamente responderia, não foi possível apresentar medidas anticapitalistas, pois a conjuntura era desfavorável e talvez o Brasil fosse o mais desmobilizado dos países citados. Mas o que dizer após as Jornadas de Junho? Por que o governo petista não apresentou nenhuma medida de caráter mais estrutural após os grandes levantes que sacudiram o Brasil? Enquanto o movimento nas ruas exigia “saúde e educação padrão FIFA”, o PT dedicou-se a propalar a falácia de que se tratava de um “golpe da direita”. Enquanto a população, indignada pela deterioração dos serviços públicos começada por FHC e seguida pelo lulismo, estava nas ruas exigindo uma transformação das instituições políticas rumo a uma democracia real, o governo do PT através de seu Ministro da Justiça, oferecia a Força Nacional para endossar a política de repressão e criminalização de governos neoliberais como o de Alckimin em São Paulo e Cabral no Rio de Janeiro. Quem faz o jogo da direita? Em que armadilhas caiu o PT? Será que estamos presenciando o resultado da conversão transformista que o transformou em partido da ordem?
Nossa hipótese é que sim. Por isso, a política anticorrupção nada tem de moralista, pois a corrupção é o mecanismo de imbricação dos interesses econômicos e políticos. Não à toa, o “mensalão” foi uma operação para aprovar uma reforma da previdência de cariz absolutamente neoliberal, favorecendo aos fundos de pensão (incluindo alguns com participação de dirigentes do PT), um dos mecanismos mais perversos do mercado financeiro, ainda mais quando se trata de dinheiro destinado às aposentadorias dos trabalhadores. Foi, ainda, o mecanismo de constituição da base governista no Congresso Nacional. Como sabemos, há muitos deputados à venda na base dos partidos, e o PT – para garantir uma governabilidade cômoda e inofensiva aos interesses do capital – aceitou comprar. Este é o papel de um partido que em seu manifesto inicial dizia-se nascer “da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política”? Não à toa o PSOL começou a nascer naquele episódio.
Por último, o Sr. Emir Sader decreta o “fracasso da extrema esquerda” pelos índices eleitorais, aos moldes da velha tradição social-democrata, que confunde força eleitoral com maioria social. O critério de análise fundamental que Sader, capturado pela acomodação petista esquece, é que o Estado Burguês legitima sua dominação com as eleições e não acaba com ela por esta via. Apesar de o PSOL ter crescido muito eleitoralmente desde sua fundação, é a luta de classes que define os rumos da dominação política e econômica e, portanto, o desenvolvimento de alternativas de esquerda, combativas com vocação para a transformação social, aliás, como foi o nascimento do PT nos anos 80.
Agora, a luta de classes esquentou no Brasil, grandes mobilizações exigiram mudanças mais profundas e como respondeu o governo “progresssita” do PT? Defendendo a ordem e os negócios daqueles que além de aliados políticos se tornaram financiadores de campanha. Viraram até mesmo “exemplos bem-sucedidos a ser seguidos”, como nas palavras de Dilma referindo-se a Eike Batista.
O verdadeiro bloco de poder no Brasil, sustentado e promovido pelo PT, tem hegemonia da classe dominante e nenhuma luta por parte do PT em seu interior para impor os interesses da maioria do povo. Se for verdade que o governo progressista brasileiro, como se refere Sader, foi produto de uma onda de descontentamento e esperança de mudanças, depois de privatizar, corromper, terceirizar e legitimar a repressão, quem realmente fracassou em seus objetivos?
Bernardo Corrêa é sociólogo da Fundação Lauro Campos e presidente do PSOL Porto Alegre.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A saída do Capitalismo já começou


Introdução de André Gorz[1] ao Manifesto Utopia: “Mas então, disse Alice, se o mundo não tem nenhum sentido, o que nos impede de inventar um?”
Editora Paragon/Vs

Traduzido do francês por Augusto Patrini[2]



André Gorz

A questão da saída do capitalismo nunca deixou de ser atual. Ela está colocada em termos e com uma urgência radicalmente novos. Por seu desenvolvimento mesmo, o capitalismo atingiu um limite tanto interno como que externo, que ele é incapaz de ultrapassar, e que o torna um sistema morto vivo, que sobrevive se camuflando por subterfúgios a crise de suas categorias fundamentais: o trabalho, o mérito, e o capital.
Esta crise do sistema tem como fato marcante que a massa dos capitais acumulados não é mais capaz de se valorizar pelo crescimento da produção e pela ampliação do mercado. A produção não é mais o bastante lucrativa para poder valorizar os investimentos produtivos adicionais. Os investimentos de produtividade por meio da qual cada empresa tenta restaurar seu nível de lucro têm como efeito a liberação de formas de consumo assassinas que se traduzem, entre outros efeitos, pela redução competitiva dos efetivos, terceirização, desalocação e precarização dos empregos, a baixa das remunerações, e assim, em escala macro-econômica, a baixa do volume de trabalho produtor de mais-valia, e a baixa do poder de compra. Ora, quanto menos as empresas empregam trabalho e cada vez mais taxa de capital fixo por trabalhador é substancial, maior é a taxa de exploração, quer dizer de sobre-trabalho e sobre valorização produzida por cada trabalhador deve ser mais elevada. Há nesta elevação um limite que não pode ser indefinidamente recuada, mesmo se as empresas se transfiram para a China, para as Filipinas ou para o Sudão.
Os números atestam que este limite já foi atingido. A acumulação produtiva de capital produtivo não para de regredir. Nos Estados-Unidos, as 500 firmas do índice Standard & Poor´s dispõem, em média, de 631 bilhões de reservas liquidas, a metade dos benefícios das empresas americanas provêm de operações nos mercados financeiros. Na França, o investimento produtivo das empresas do CAC 40 não aumentam, mesmo quando seus benefícios explodem. A impossibilidade de valorizar os capitais acumulados pela produção do trabalho explica o desenvolvimento de uma economia fictícia fundada na valorização de capitais fictícios. Para evitaruma resseção que desvalorizaria o capital excedente (sobre-acumulado), os poderes financeiros habituaram-se a incitar os consumidores ao endividamento, a consumir sua renda futura, seus ganhos financeiros futuros, a alta futura de seus imóveis, enquanto que a Bolsa capitaliza primeiro o crescimento futuro, os lucros futuros das empresas, as compras futuras dos consumidores, os ganhos que fariam os cortes e as reestruturações impostas pelos LBO[3], das empresas que ainda não tenham colocado em prática a precarização, a super-exploração e a terceirização do seu pessoal.
O valor fictício (das Bolsas) dos ativos financeiros dobrou em um espaço de tempo de aproximadamente seis anos, passando de 80 000 à 160 000 bilhões de dólares (ou seja, três vezes o PIB mundial), criando para os Estados-Unidos um crescimento econômico fundado no endividamento interior e exterior, o qual cria em seus domínios uma liquidez da economia mundial e o crescimento da China, dos países vizinhos, e por efeito colateral, da Europa.
A economia real tornou-se um apêndice das bolhas financeiras. É necessário, imperativamente, um novo fluxo de capital para a bolha financeira não exploda – e uma alta continua do preço imobiliário para que não destrua-se a bolha dos certificados de investimentos imobiliários por meio da qual os bancos atraíram poupança dos indivíduos prometendo-lhes mil maravilhas – pois a explosão destas bolhas ameaçaria o sistema bancário com falências em cascata, e a economia real de uma depressão prolongada (a depressão japonesa dura quinze anos). “ Nós caminhamos na beira de um abismo”, escrevia Robert Benton. Aí está, por que, nenhum Estado ousa tomar para si o risco de se alienar ou de inquietar os poderes financeiros. Não há nada a esperar de decisivo dos Estados nacionais que, em nome do imperativo da competitividade, abdicaram passo à passo no curso dos últimos trinta anos aos seus poderes para entregá-los a um quasi-Estado supranacional que impõe leis feitas sob medida para o benefício do capital financeiro mundial, de que ele é a emanação. Estas leis, promulgadas pela OMC, OCDE, FMI impões na fase atual o “tudo-é-mercadoria”, quer dizer a privatização dos serviços públicos, o desmantelamento da proteção social, a monetarização dos magros restos das relações não comerciais. Tudo acontece como se o capital, após ter ganho a guerra que ele decretou a classe operária em meados dos anos setenta, tratasse de eliminar todas relações sociais que não sejam relações comprador/vendedor, quer dizer aquelas que não reduzem os indivíduos em seres consumidores de mercadorias e vendedores de seu trabalho ou de outra “prestação de serviço” considerada como “trabalho”, independentemente do pouco que ela seja tarifada. O “todos-somos-comerciantes”, o “tudo-é-mercadoria” como formas exclusivas de relação social, seguidas da liquidação completa da sociedade, o que Margaret Thatcher tinha anunciado como projeto. O totalitarismo do mercado se explicitou como estrategia de dominação. Desde então que a globalização do capital e dos mercados, e a ferocidade da concorrência entre capitais particulares exigiam que o estado não fosse mais o garantidor da reprodução da sociedade, mas garantidor da competitividade das empresas, suas margens de manobra em matéria de política social estando condenadas a diminuir, os custos sociais eram denunciados como estorvos a livre concorrência, e entrave para a competitividade, o financiamento publico deveria ser então aliviado pela privatização.
O “todos-somos-comerciantes” desferia ataques ao que os britânicos chamam de commons e os alemães de Gemeinwesen, quer dizer a existência de bens comuns indivisíveis, inalienáveis, inconfiscáveis, incondicionavelmente acessível a todos. Contra a a privatização dos bens comuns, os indivíduos têm a tendência em reagir com ações comuns, unidas por apenas um objetivo. O Estado tem a tendencia de impedir, e em muitos casos impedir e reprimir esta união de todos, cada vez mais rigidamente, que agora ele não possui mais margens suficientes para apaziguar as massas pauperizadas, precarizadas, despojadas de direitos adquiridos. Cada vez mais sua dominação torna-se mais precária, mais as resistências populares ameaçam de se radicalizar, e mais a repressão é acompanhada por políticas que direcionam os indivíduos, uns contra os outros e designam os bodes expiatórios sobre os quais concentrar seu ódio.
Se percebemos-se o espírito deste senário, os programas, os discursos e os conflitos que ocupam o centro da cena política parecem derisórios e deslocados em relação ao mecanismos da realidade. As promessas e os objetivos colocados como prioritários pelos governantes e pelos partidos aparecem como diversões irreais, que mascaram o fato que o capitalismo não oferece nenhuma perspectiva, se não aquela de uma degradação continua das condições de vida, do agravamento da crise, passando por degradações econômicas cada vez mais longas, com curto e fracos períodos de recuperação. Não há nenhum “melhor” a ser esperado, se julgamos o melhor segundo os critérios habituais: não haverá “desenvolvimento” sob a forma do aumento do emprego, do salário e da segurança social. Não haverá mais “crescimento” de cujos os frutos possam ser socialmente redistribuídos e utilizados para um programa de transformações sociais que transcendam os limites e a lógica do capitalismo
A esperança colocada, há quarenta anos, nas “reformas revolucionárias” que nasceram do interior do sistema sob pressão das lutas sindicais, que acabaram por transferir para a classe operária os poderes arrancados do capital, esta esperança não existe mais. A produção necessita cada vez menos de trabalho, e distribui cada vez menos poder de compra com cada vez menos ativos; elas não são mais concentradas em grandes indústrias, e nem lá mais se concentra a força de trabalho. O emprego é cada vez mais descontinuo, disperso em prestadores de serviço externo, sem contato entre eles, com um contrato comercial em vez de um contrato de trabalho. As promessas e os programas de “retorno” ao pleno emprego são miragens cuja a função é somente manter o imaginário salarial e comercial, quer dizer, a idéia que o trabalho deve necessariamente ser vendido a um empregador e os bens de subsistência comprados com o dinheiro ganho; de outra forma dito: que não há salvação fora da submissão as necessidades do consumo de mercadorias; que não há vida, não há sociedade além da sociedade da mercadoria e do trabalho mercantil, além e fora do capitalismo.
O imaginário comercial e o reino da mercadoria impedem a qualquer um imaginar a possibilidade de sair do capitalismo, e impedem conseqüentemente o “querer sair”. Também há tanto tempo que permanecemos prisioneiros do imaginário salarial e mercantil, que o anticapitalismo e a referência de uma sociedade além do capitalismo torna-se abstratamente utópica, e as lutas sociais contra as políticas do capital permaneceram lutas defensivas que, no melhor dos casos, poderão frear, mas não impedir a deterioração das condições de vida.
A “reestruturação ecológica” somente vai agravar a crise do sistema. É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica que são empregados há 150 anos. Se prolongamos a tendência atual, o PIB mundial será multiplicado pelo fator 3 ou 4 no ano 2050. Ora, segundo o relatório do Conselho sobre o Clima da ONU, as emissões de CO2 deverão diminuir em 85% até esta data para limitar o reaquecimento climático em 2o C, as conseqüências serão irreversíveis, e não controláveis.
A desaceleração é então um imperativo de sobrevivência. Mas ela supõe uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais. Em sua falta, a desaceleração corre o risco de ser imposta a força, com restrições, racionamentos, e alocações de fontes características de um socialismo de guerra. A saída do capitalismo se imporá então de uma forma ou de outra. A reprodução do sistema é assombrada ao mesmo tempo por seus limites internos e externos engendrados pela pilhagem e pela destruição de uma das duas “principais fontes de onde provêm toda riqueza”: a terra. A saída do capitalismo já começou sem que ainda se tenha desejado-a conscientemente. A questão é então somente com que forma e com que cadência ela vai acontecer.
A instauração de um socialismo de guerra, ditatorial, centralizador, tecnocrático, seria uma conclusão lógica, somos tentados a dizer “normal” - de uma civilização capitalista que na preocupação de valorizar massas crescentes de capital, procedeu ao que Marcuse chama de “dessublimação repressiva”, quer dizer a repressão das “necessidades superiores”, para criar metodicamente necessidades crescentes de consumo individual, sem se preocupar com as condições de sua satisfação. Ela é aludida desde o começo da questão que está na origem das sociedades: a questão entre a relação das necessidades e as condições que tornam sua satisfação possível: a questão é a forma como gerenciar os recursos limitados de maneira que eles sejam suficientemente duráveis para cobrir a necessidade de todos; e inversamente a procura por um acordo geral sobre o que será suficiente para cada um, de maneira que as necessidades correspondam aos recursos disponíveis.
Nós chegamos então ao ponto onde as condições não existem mais para permitir a satisfação das necessidades que o capitalismo nos deu, inventou, impôs, persuadiu a ter, para poder fazer escoar as mercadorias que ele nos ensinou a desejar. Para nos ensinar a renunciar a isto, a eco-ditadura parece a muitos ser o caminho, o mais curto. Ela seria a preferência daqueles que sustentam o capitalismo e o mercado para apenas serem capazes de criar e redistribuir as riquezas, e que preveria uma reconstituição do capitalismo sob novas bases depois das catástrofes ecológicas tenham recolocado o “medidor” no zero, provocando o anulamento das dividas, e do crédito.
Portanto uma via totalmente diferente é possível. Ela leva a uma extinção do mercado e do salariado pelo desenvolvimento da auto-produção, da disponibilização comum, da gratuidade. Encontramos os exploradores e os pesquisadores desta via nos movimentos dos softwares livres, da rede livre (freenet), da cultura livre que com licença CC (Créative Communs) torna livre ( e livre: free em inglês, ao mesmo tempo, significa acessível, utilizável por todos, e gratuito) do conjunto dos bens comuns culturais – conhecimentos, programas, textos, musicas, filmes, etc – reproduzíveis em um número ilimitado de cópias por um custo negligenciável. O passo seguinte seria logicamente a produção “livre” de toda vida social, começando-se por subtrair do capitalismo certos flancos suscetíveis de serem auto-produzidos localmente por cooperativas comunais. Este gênero de subtração da esfera mercantil é compreendida por bens culturais onde ela foi batizada de “auto-cooperating”, um exemplo clássico é a Wikipedia que está em processo de “auto-cooperar” a Enciclopédia Britânica. A extensão deste modelo aos bens materiais tornou-se cada vez mais fraca graças a baixa dos meios de produção e a difusão dos saberes técnicos requisitados para a sua utilização. A difusão de competências informáticas, que fazem parte da “cultura do cotidiano” sem terem sido ensinadas, é um exemplo entre tantos outros. A invenção dos fabbers, também chamados digital fabricators ou factories in a box – trata-se de uma espécie de ateliês flexíveis transportáveis e instaláveis em qualquer lugar – obra da auto-produção local, com possibilidades preticamente ilimitadas.
Produzir aquilo que nós consumimos e consumir aquilo que nos produzimos é a via real da saída do mercado: ela nos permitiria perguntar-nos de que realmente temos necessidade, e em que quantidade e em qual qualidade, e de redefinir pela concertação tendo em conta o meio-ambiente e as matérias primas, a norma do suficiente que a economia de mercado tenta de toda forma abolir. A auto-redução do consumo, sua auto-limitação – o self-restreint – e a possibilidade de reencontrar o poder sobre nossa forma de viver, passam por isso.
É mais provável que os melhores exemplo de praticas alternativas de ruptura com o capitalismo nos venham do sul do planeta, julgando-se a criação no Brasil nas favelas mas não somente das “novas cooperativas” e dos “pontos de cultura”. Claudio Prado, que dirige o departamento da “cultura numérica” no ministério da Cultura, declarou recentemente: “O “job” é uma espécie em via de extinção... Nós esperamos pular essa fase sem valor do século XX para passar diretamente do século XIX para o século XXI.” A auto-produção e a reciclagem de computadores, por exemplo, são sustentadas pelo governo: Trata-se de favorizar “a apreciação das tecnologias pelo usuário dentro do objetivo da transformação social”. Tão bem, que três quertos de todos os computadores produzidos no Brasil em 2004/5 foram autoproduzidos.
Setembro 2007



[1] André Gorz, nascido Gerhard Hirsch, (Viena, fevereiro de 1923 — Vosnon, 22 de setembro de 2007) foi um filósofo austro-francês, também conhecido pelo pseudônimo Michel Bosquet.
Como jornalista, ajudou a fundar em 1964 o semanário Le Nouvel Observateur. Apoiador de Sartre na versão existencialista do marxismo depois da guerra, rompeu com ele após o Maio de 68. Passou a se interessar por ecologia política e tornou-se um de seus principais teóricos. Seu tema central foi o trabalho: liberação do trabalho, justa distribuição de trabalho, trabalho alienado, etc. Ele também defendeu a Renda Básica de Garantia (ou Renda básica de cidadania), que tem no Senador Eduardo M. Suplicy seu principal defensor no Brasil.
Autor da obra "Metamorfoses do Trabalho", na qual analisa, entre outras questões, a relação do Cálculo Contábil com a Racionalidade Econômica.
André Gorz cometeu sui
cídio no dia 24 de Setembro de 2007, aos 84 anos, porque sua mulher, Doriane, estava acometida de doença incurável, e segundo o próprio Gorz, não seria possível para ele viver um segundo sequer nesse mundo sem a presença e a companhia de sua amada.
[2] Augusto Patrini, tradutor: apatrini@terra.com.br
(11) 79851918
[3] Um leveraged buyout (LBO), também conhecido como highly-leveraged transaction, refere-se a uma transação onde um se adquire o controle acionário de empresa e uma parcela signifcativa do pagamento é financiado através de dívida.Esta estratégia normalmente passa por criar um veículo (empresa) com relativamente pouco capital que procede à compra da empresa alvo endividando-se pelo montante da compra. De seguida, após a aquisição, o veículo e a empresa alvo são fundidos numa só empresa, pelo que na prática a empresa adquirida acaba por assumir a dívida usada para a comprar, e o investimento total dos compradores, muitas vezes firmas de Private Equity, se resume ao capital do veículo, um montante muito inferior ao custo da compra da empresa alvo; são usuais rácios de 30% equity/70% dívida, mas na prática esta distribuição pode chegar até próxima de 0% equity/100% dívida.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Mídia e Estado seguem em insidiosa ação de deslegitimação das mobilizações e incentivo à violência





Em greve há exatos 60 dias, os professores da rede municipal do Rio de Janeiro protagonizam o grande movimento reivindicatório do momento, tornando-se, portanto, os novos alvos da disputa ideológica em torno dos atos de rua, e seus significados, que vêm colocando o país de manifesto. A pauta da categoria em greve foi praticamente substituída pelas polêmicas em torno de violências nos protestos, seja por parte da polícia ou do novo ator político da cena, o black bloc.

“Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam”, disse ao Correio da Cidadania o historiador Mario Maestri, em entrevista que discute a violência do Estado, da mídia e também a atuação e a pertinência da tática do bloco negro, condenados ou exaltados dentro dos próprios debates da esquerda.

Maestri não mostra deslumbramento com a audácia dos ainda pouco interpretados ativistas de preto, mas pondera a discussão destacando a incessante atuação da mídia (que, não custa lembrar, pediu e recebeu o sangue dos manifestantes antes da virada de 13 de junho), aliada aos grupos estabelecidos no poder, no sentido único e exclusivo de desmobilizar os movimentos através do medo, enquanto omite toda a barbárie policial.

“Quando de greves, (a mídia) foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos”, assinala o historiador gaúcho.

Em sua visão, a explosão de junho ainda não criou o impulso posterior para a formação de um grande, e mais unificado, movimento em torno das necessidades essenciais, entre outras coisas porque “vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins dos anos 1980”, além de faltarem maior organização partidária e sindical para dar conta da magnitude do momento e capitalizá-lo em favor das causas e organizações populares.

A entrevista completa com Mario Maestri pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como vê o país após as multitudinárias manifestações de junho, com a atual retomada de movimentos populares Brasil afora? Vivemos uma retomada do fôlego da cidadania e, quem sabe, da construção de uma nova democracia?

Mário Maestri: Não vejo cenário social e político tão positivo. Apesar de sua indiscutível importância para a consciência de enormes parcelas da população, as manifestações de junho não abriram uma nova etapa histórica, modificando qualitativamente a correlação de forças entre o mundo do capital e do trabalho. Foram, sobretudo, a explosão do difundido mal estar de imensas parcelas da nossa sociedade, protagonizada pelos segmentos assalariados ditosinferiores médios urbanosAs manifestações não conseguiram construir uma pauta de reivindicações clara, núcleos organizacionais e direção reconhecida.

Sobretudo, o operariado não interveio naquelas manifestações, ou após elas, quando do fiasco da tentativa da burocracia sindical de reconquistar o espaço simbólico-representativo perdido. Uma imobilidade devida substancialmente à baixa consciência e organização dos trabalhadores, os únicos segmentos sociais capazes de sustentar efetivamente um projeto de democratização social e política de largo fôlego.

Os aparatos de domínio de nossa habilidosa e despótica sociedade de classe procuram absorver e metabolizar o desequilíbrio produzido pelas manifestações – o que conseguem em um grau certamente não uniforme, em relação aos diversos segmentos sociais e diversas regiões do país, como prova a atual situação do Rio de Janeiro. Nesse processo, desempenha importante papel a mídia, sobretudo a televisiva, articulada explícita e implicitamente com os órgãos estatais. Foi e segue a insidiosa ação de deslegitimação e neutralização midiática das mobilizações, que alcançaram enorme consenso entre a população.

Correio da Cidadania: Como tem ocorrido esse processo de desconstrução do apoio às manifestações de junho, e das que se seguiram a ela, pela mídia?

Mário Maestri: Em junho, após o ataque frontal às mobilizações, a grande mídia procurou redirecionar sua retórica, devido ao caráter fluvial e apoio geral da população às demonstrações de rua. Por um lado, procurou influenciar politicamente o movimento, apresentando-o como anti-político, anticorrupção, anti-esquerda, diluindo suas reivindicações materiais – passagem, saúde, educação. Por outro, dividiu os manifestantes em bons e maus e as manifestações em positivas (aceitáveis) e negativas (abomináveis). Tudo segundo os padrões maniqueístas das narrativas televisivas triviais. Uma divisão com objetivos estratégicos.

A mídia apresentou as manifestações positivas como constituídas por cidadãosconscientes, e as negativas, por baderneiros, depredadores, anarquistas, arruaceiros. Mesmo sendo marginais os atos definidos como antissociais, e não raro encontrarem-se em contradição com as mobilizações, provocando comumente o repúdio dos manifestantes, a mídia televisiva centrou obsessivamente neles as imagens e os comentários. Procura assim fixá-los e generalizá-los na retina do público, em processo consciente de intoxicação social, como o cerne das mobilizações, sua verdadeira essência. Procedimento reproduzido, em suas esferas de atuação, pelos grandes diários e revistas, por parlamentares, por cientistas sociais etc.

Uma sintaxe de divulgação televisa dos movimentos sociais que, midiatizando incessantemente as imagens-comentários desses fatos marginais, apresenta-os como elementos centrais, deslocando o conteúdo e essência dos fatos, como proposto. Prática generalizada pela grande mídia, que, quando de greves, foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos.

Nas manifestações de junho e nas mobilizações sucessivas, raramente os repórteres aproximavam-se dos manifestantes para ouvir seus pontos de vista, enquanto eram regularmente entrevistados representantes das forças policiais ou comentados os danos causados pelos baderneiros. Os depoentes enquadrados eram e são quase essencialmente os que corroboravam os conteúdos conservadores propostos pela mídia para as mobilizações. A apresentação de um comentário se fixa como a opinião geral, ainda mais quando são diversos depoentes.

Correio da Cidadania: Como você encara a forma com que o Estado lida com as mobilizações populares? Há articulação entre o Estado e a grande mídia? O que pensa de grupos como, por exemplo, a Mídia Ninja?

Mário Maestri: Esse processo de demonização e de criminalização da luta social deu-se em íntima aliança com o Estado. Sobre muitos atos de violência midiatizados são abundantes as provas e indícios de que foram e são promovidos, incentivados ou viabilizados pelos órgãos policiais. Diante dos olhos atônitos da população, ataques a bens públicos valorizados como orelhões, paradas de ônibus, bancos de praças, vidraças de prédios, de moradias etc. processam-se longamente, sem inibição, fartamente filmados, enquanto manifestantes são agredidos pela polícia, longe do enquadramento faccioso da mídia.

Esse processo de seleção da imagem e da informação pela grande mídia tem sofrido desconstrução, ainda que limitada, permitida pela verdadeira democratização relativa da captação e divulgação da imagem, através, sobretudo, da filmagem por celulares, e sua divulgação no facebookyoutubeetc. Essa espécie de guerrilha da imagem e de seus conteúdos tem constrangido comumente a grande imprensa, pautando-a e neutralizando-a, relativamente. Propostas como a Mídia Ninja são ensaios de salto de qualidade em possibilidades ainda pouco aproveitadas pelo movimento social organizado.

A pronta criminalização por parlamentos estaduais do uso de máscaras em manifestações – a máscara é característica do criminoso – registrou igualmente a sinergia perfeita e imediata entre os órgãos legislativos do Estado, os órgãos repressivos e a demonização das manifestações pela grande mídia. Sobretudo em um Estado em que a polícia mata e tortura sistematicamente, sobre a eterna justificativa ou desculpa das autoridades superiores de que não sabiam, é um direito indiscutível do manifestante não revelar sua identidade.

Correio da Cidadania: E como vê, especificamente, a atuação de grupos como os Black Blocs, que também têm se destacado e despertado polêmicas na cena política?

Mário Maestri: É inegável que alguns atos indiscriminados de depredação urbana foram produzidos por jovens que se colocam como parte do campo popular e da esquerda, não raro se reivindicando da ideologia anarquista – certamente do anarco-individualismo, que conheceu derrapagem terrorista, e não do anarco-sindicalismo. Defendem explicitamente uma didática e uma estética da violência, de pretenso cunho político, materializadas na depredação de vidraças de bancos, de prefeituras, de assembleias legislativas e outros símbolos do grande capital e de poder político legislativo e administrativo, que, com razão, são crescentemente odiados por segmentos populares.

Paradoxalmente, a midiatização exacerbada e interessada desses atos tende a alimentar e fortalecer sua prática por frações politicamente atrasadas da juventude, inebriadas por um possível protagonismo, que nos fatos parasita o movimento de massas ao qual aderem formalmente. Protagonismo que disputa indiscutivelmente a hegemonia ao movimento de massas. Essas práticas se fortalecem devido à falta de alternativa política e à lumpenização material e cultural à qual o capitalismo lança parte significativa da juventude.

A destruição enquanto estética, didática e prática sistemáticas é própria de segmentos médios radicalizados ou marginalizados, que veem nos objetivos ou nos símbolos que destroem fetiches que os atraem, mas pelos quais são rejeitados na esfera do consumo, e desconhecidos, na da produção. Ela é estranha ao mundo do trabalho, sobretudo organizado, que se objetiva e subjetiva através da construção social – e não da destruição – dos bens materiais e imateriais, e de cujo gozo é fortemente alienado.

Correio da Cidadania: Como podemos definir o fenômeno Black Bloc?

Mário Maestri: O Black Bloc é a organização de jovens por afinidade, em torno de núcleos organizados, facilitada pela mídia social. São, sobretudo, produto da derrapagem de sentimentos antissistema e de tendências protagonistas de jovens radicalizados ou simplesmente atraídos pela destruição e pela violência, em um mundo que não lhes oferece sequer como possibilidade longínqua a perspectiva e o prazer da construção e autoconstrução. A esses grupos se juntam indiscutivelmente provocadores e jovens marginalizados atraídos pela prática da violência.

Na França, a cada ano novo, centenas de automóveis são simplesmente incendiados por jovens da periferia parisiense e das grandes cidades das províncias. Após isso, recolhem-se à vida degradante e excludente das grandes periferias urbanas em que vivem embretados centenas de milhares de jovens pobres e sem trabalho, em boa parte de origem extra-francesa, mais ou menos distantes, não raro com crescente escolarização.

Do reconhecimento das origens sociais desses comportamentos, não podemos e não devemos promover sua elevação ao status de ação política progressiva. É indiscutível a utilização de tais atos contra o movimento social, do qual o Black Bloc disputa o protagonismo, desviando e enfraquecendo o seu sentido político e social. São indiscutíveis a infiltração e a manipulação policial e política desses grupos, mesmo devendo seu surgimento às razões assinaladas. O movimento social deve defendê-los, se necessário, mas criticando esse tipo de atuação e, sobretudo, delimitando as fronteiras políticas e geográficas com os mesmos.

Correio da Cidadania: Nesse contexto, como enxerga a luta contra a repressão policial violenta das manifestações populares? A desmilitarização da polícia, bandeira hoje na boca de tantos coletivos, teria papel nesse processo?

Mário Maestri: A discussão do fenômeno do Black Bloc é dificultada porque, aqui e ali, esses grupos confrontam-se com as forças policiais que reprimem violentamente o direito inalienável de manifestação e demonstração política e sindical da população. Contudo, mesmo nesse caso, desempenham papel nefasto, ao se apresentarem como falso sucedâneo da necessária organização da autodefesa das mobilizações populares.

Nesse sentido, as organizações políticas de esquerda, como o PSTU, que criticarem grupos como o Black Bloc, sem proporem e avançarem a autodefesa organizada das mobilizações, que proteja os manifestantes e estabeleça os limites geográficos e políticos das demonstrações, professam apenas pacifismo intrínseco, absolutamente estranho à tradição do mundo do trabalho, em indiscutível processo de acomodação às instituições dominantes.

Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam. Prática que demonstrará, igualmente, que somente uma população organizada consegue conquistar mais paz e mais ordem, ao limitar e reprimir o poder de intervenção das forças policiais, agentes da desordem, sobretudo em um Estado que pratica histórica, sistemática e impunemente a violência contra sua população.

O princípio da auto-organização da defesa das manifestações, para obter e manter o direito de manifestação e a ordem pública, diante de Estado promotor da violência e da desordem, aponta igualmente para a exigência da desmilitarização da polícia e sua colocação sob o controle e a vigilância diretas das comunidades organizadas, às quais a polícia deve apresentar contas e se submeter. Apenas o exercício da autovigilância e do autocontrole dos locais de moradia e de trabalho, por seus próprios membros organizados, permitirá minimizar a violência urbana e extra-urbana, democratizando tendencialmente a sociedade.

Correio da Cidadania: Você não enxerga, portanto, avanço qualitativo das forças populares no Brasil, quanto à organização e às políticas, depois de junho. Que medidas ou atitudes seriam, então, essenciais para capitalizar um cenário de efervescência política e social?

Mário Maestri: A reconquista parcial da situação pré-junho, que certamente não conseguiu, ainda, dissolver as conquistas no nível de consciência e das práticas de importantes parcelas da população, registra-se na atual recuperação da avaliação positiva da presidenta, favorecida pela tímida expansão econômica, pela manutenção do emprego, por medidas como o Mais Médicos e pela denúncia na ONU da ingerência estadunidense. Nem que, aparentemente, tudo parece retornar como “dantes, no quartel de Abrantes”!

A negativa da Justiça de reconhecimento do partido de Marina Silva, que a obrigou a apear de sua demagogia anti-partido/anti-política, circunscreve o apoio do grande capital ao petismo e ao seu programa de escorcho social e alienação dos bens públicos e nacionais – salários irrisórios; privatização dos portos, aeroportos, petróleo, comunicações etc. Tudo sugere a reeleição da Dilma Rousseff, talvez sem segundo turno, em 2014, caso não tenhamos acidentes de percurso, é claro.

As atuais mobilizações possuem caracteres distintos em relação às multitudinárias de junho. De menor significado e repercussão, temos por um lado movimentos estudantis e urbanos diversos, ainda sob a influência e impulso dos sucessos de junho. Por outro lado, importantes e combativos movimentos de segmentos assalariados médios, como os dos bancários; os dos trabalhadores do Correios; os dos professores, com destaque para os do Rio de Janeiro, que transbordam os marcos da reivindicação profissional. Eles expressam o mal estar social nascido de arrocho salarial e da degradação das condições de trabalho e de existência – elevadas jornadas de trabalho, saúde, educação, mobilidade urbana etc.

Todas essas lutas certamente sofreram influxos positivos das jornadas de junho, que esgotaram relativamente seu dinamismo, como tendem a se esgotar esses importantes combates singulares, sobretudo devido à inexistência, sequer como tendência clara, de movimento de unificação regional e nacional, política e orgânica, dessas lutas. Ou seja, não se vislumbram órgão sindical centralizado e partidos de classe capazes de proporem e dirigirem essa imprescindível unificação e centralização, capaz de enfrentar um Estado do capital, ferreamente centralizado e unificado, sobretudo quando se trata de impor a exploração e reprimir as lutas e reivindicações sociais. Vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins do anos 1980.

A proposta da unidade sindical dos trabalhadores e assalariados, em torno de poderosa central sindical, foi liquidada pela ação do Estado burguês coadjuvado pelas organizações de esquerda com alguma força. Como as igrejas evangélicas, as centrais sindicais transformaram-se em espécie de caça-níqueis maravilhosos, capazes de gerar enormes ganhos econômicos, das quais nenhum grupo político com alguma força abre mão. Atomização e fatiamento que debilitam política e organicamente a luta e a organização dos trabalhadores. A mera centralização qualitativa dos trabalhadores em uma só central sindical fortalece ideologicamente o movimento e cria as melhores condições para mobilizações que questionem as direções pelegas. A atomização sindical é literalmente contrarrevolucionária.

Os partidos que se definem de esquerda também foram absorvidos pelos prazeres da gestão, mesmo marginal, do Estado burguês. A conquista de posições parlamentares e suas benesses embriagaram, sem exceções, os principais partidos da esquerda no Brasil, que literalmente nada têm a dizer, a não ser retoricamente, ao mundo do trabalho. Preocupam-se essencialmente com a participação nas próximas eleições, para conseguirem eleger mais alguns deputados e vereadores, os que já os têm, e obter os primeiros parlamentares, os que não os têm.

No Rio Grande do Sul, no contexto da enorme repressão do senhor Tarso Genro aos professores da rede de ensino público estadual, aos quais nega o próprio piso legal, a senhora Vera Guasso, presidente estadual do PSTU, aceitou convite para sentar-se no canapé do governador, para desdramatizar um excesso dos órgãos policiais do Estado (perquirição policial de moradia de militantes) contra o movimento social dos tantos que já se transformam em norma também no Rio Grande do Sul. No que foi seguida imediatamente pela presidente regional psolista! Tudo para obter um reconhecimento e respeitabilidade institucionais capazes, talvez, de avançar os escores eleitorais.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.