quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Então se fez a lama











(Você pensa que não pode deixar de fazer)





Ler ao som de “Misterions” (live)- Portishead







Você pensa que não pode deixar de fazer. Você grita, para dentro, que não pode deixar de fazer. Você precisa de grana, urgentemente precisa de grana. Está desesperado. Você não pode deixar de fazer. Está dominado por isso. Está quase na hora.
É que às vezes o mundo se destrói com uma gota d’água.
O absurdo não é o absurdo, mas perguntar-se qual sua causa.
Tudo é absurdo. O fim é nada e o todo é nada. Não sabia mais por que estava a viver. Queria pensar que talvez fosse melhor morrer ou vir a morrer, de doença, acidente ou assassinato, mas queria pensar que sentir paz ainda era possível. Que assim fosse, em morte ou em vida. Que talvez até umas poucas doses de álcool ou qualquer outra droga, legal ou ilegal, não importa, seriam capazes de lhe dar aquele anestesiamento brando que via no olho dos outros.
Mas tudo isso, não finaria com esse seu sentimento de não se pertencer, de não saber mais quem era e o porquê era.
Fora de você, a chuva cai melancolicamente na cidade. Apenas mais uma cidade latino-americana: grande, barulhenta e suja. A Paulista, a Augusta e a Angélica continuam todas lá, com seus grandes edifícios cinzas. Você pensa que este país está uma merda. São 7:35 da manhã e o céu continua igual ao de ontem e ao de anteontem; cheio de nuvens cinzas. Você olha a padaria-café-quase-boteco à sua volta e não pode respirar. Você toma o seu café em goles longos. O ambiente é enfumaçado, uma mistura explosiva de nicotina e gordura. Todos os olhares na padaria são sedentos e vazios. São mais assustadores que a morte. Lembram a você a eternidade possível, cheia de brancos de solidão e tédio. O nada. Estes olhares estão prontos para fazer. Eles também precisam fazer. Eles cederam. São todos humanos como você. Como você, precisam de grana, muita grana. Eles comem também o mesmo alimento cheio de coisas químicas e dejeções. E como você, respiram sofregamente, ao meio do gás carbônico da cidade lamacenta e cinza. Os sonhos se foram para sempre.
Você arruma sua gravata nova. Cinza. Olha para suas calças pretas e seus sapatos marrons. Tudo tão escuro. Você agora não pode respirar, sufoca, e por isso resolve fumar mais um cigarro. Você tira o cigarro do maço, acende lento e traga profundo. Uma doce tontura turva invade sua mente e se mistura com a fixação dura que o café traz ao seu cérebro abatido e sonolento. Você olha para a toalha xadrez das mesas - vermelho, verde e branco. Olha para fora, através do vidro sujo da janela, e depois para o rosto descorado da balconista da padaria (por dentro, silenciosamente, ela grita.).
Mas ainda assim você lembra que tem que fazer (está quase na hora!). Ah sim, você tem que ir, não tem opção. Precisa de grana. Mesmo que isso signifique anular o que você é, e ser o que você não é,... Como estes olhares,...
Como do homem engravatado de olhos vadios azuis-esbranquiçados, tomando seu café de sempre, barrigudo e pronto para ser o capacho de mais alguém. Certamente pronto para vencer, e também para dar o cu para o boy do escritório (Não pode admitir, mas deixa-se levar, dá o cu para o boy no almoxarifado ou vai, na hora do almoço, a um cinema pornográfico do centro, se esfregar com outro engravatado covarde como ele. Irá depois, de noite, ele, cansado deita-se com culpa ao lado de sua mulher? Sua mulher, igualmente solitária, desgostosa e cheia de desejos inconfessáveis - pois depois. De gozar com o boy ele não pode mais comer ou sua mulher. Ela, porém, para não ficar tão aborrecida, trata de conseguir um homem.).
Ou ao lado dele um outro olhar. Um pouco afastada, sentadinha na mesa com ar abestalhado, uma pequena prostituta, talvez no máximo 17 anos (saiu do interior para a grande cidade, queria ser modelo, acabou virando puta na rua mais movimentada da cidade – ela também quer comprar, comprar e comprar.), já ardida e fodida (fez programas a noite toda, o primeiro cliente foi um velho macilento que queria ver a menina nua engraxando seus sapatos, os outros ela não se lembra mais, mas foram muitos.), Olhos perdidos em uma embriaguês estranha e lúgubre...(ela não pode suportar isso sem um pouco de felicidade química, uma amiga deu-lhe esta noite umas bolas, ela suporta e logo ela ganhará quase bem e logo poderá comprar sua própria diversão – além disso, quer ser puta de luxo – sair das ruas e freqüentar os grandes hotéis.).
Você pensa: “Todos eles precisam fazer”. Olhos vazios no espaço em direção à $grana$. Fazer o que é você também precisa. Precisam de grana e mais o que os outros quiserem. Eles querem que você queira. Prestígio. Fama. Realização. Solidez. Liderança e, sobretudo muita $grana$. É o que querem de você. Todos eles. “Você precisa ter ambição”, dizem. Não pode continuar vivendo como se hoje fosse hoje e amanhã apenas amanhã. Hoje deve ser amanhã, e o amanhã tem que ter $grana$. Afinal você precisa comer, pagar o aluguel, vestir, ir ao seu cinema, ler e às vezes até foder um pouquinho. Um amigo já dizia que não dá para foder sem $grana$. A vida assim é consumir.
Mas você teima em querer apenas viver: um monte de nuvens e poesia. Sempre foi aos olhos deles, o louco imaturo e um insano prepotente. Você teve coragem de dizer não. Você quis contrariar o que não era contrariável. E o fez. Além de qualquer adolescência. Você se revelou sempre. Vivendo pequenos minutos e rindo das tarefas dos outros. O hoje era apenas o hoje. Sem se perguntar até quando conseguiria viver assim. Sem se preocupar com o aluguel ou o telefone. Até mesmo no sexo, você se derretia em minutos e esquecia depois de pegar o guardanapo com telefone e ligar. Não suportava vazar as conversas apenas por fins sexuais. Queria ser verdadeiro. Não mentia. Nem fingia compreender.
Mas agora, desde aquele dia. (...) (Era diferente.).
Foi naquele dia que saiu com Cecília (menina de boa e tradicional família da cidade que adorava arte, cinema oriental e chupar seu pau) e viram os ‘policias’ (capitães do mato da ‘nova’ sociedade brasileira pós-globalização) chutarem a cabeça do mendigo (dele não há quem conheça história, dizem que é apenas uma sobra do mundo, um fantasma que não existe e não tem passado, mas ele é mais. Transcendeu o que era e o que sentia e apenas existiu). O mendigo, seu vizinho, cheio de murros e chutes. Um soco no seu estômago, por estar impotente em cima do muro. Você, covarde, não fez nada. Fechou-se egoísta. Você e Cecília em cima do muro, olhando assustados, mas depois trocando beijinhos fúteis enquanto o mendigo já tinha a cabeça rachada em plena luz do dia (foi enterrado em um cemitério para indigentes? Ou acabou numa interminável fila de hospital?). Dizem, alguns fascistas do novo mundo globalitário: “Tudo em nome da ordem e do capital”. Revoltante, sim, mas você continuou lá, impotente e covarde, em cima do muro, confortavelmente instalado, entre seu cineminha underground, sua superioridade alienada e a buceta da Cecília. Você podia racionalizar isto. Até então podia. Você podia. Você devia e tinha que fazer.
Mas agora eram outros tempos. Nem mais a buceta de Cecília você tinha,... Por que para ela também você tinha que fazer. Sem fazer, não! Não haveria mais buceta, nem Cecília (além de chupar seu pau ela queria casar e ter dinheiro - $grana$.), nem mesmo outras Andréias, Lias ou Joanas. Ela era igual às outras. Ela era como os outros, para ela também, você tinha que fazer. Ela agora não existia mais. Estava ‘quase-morta’, atrás de mesas, papéis e burocratas. Não existia para você que não podia fazer. Que não queria fazer. Que, tolo, insistia em ser livre. A liberdade não existe mais. Tudo passou.
Um espaço branco aberto entre o que foi e o que era, sufocou teu peito e arrastou-te para a fuligem cinza desta padaria-quase-boteco. Você escolheu? Não. Entrou: - “Um café, por favor”. O mendigo,... E você nem sabia quem ele era. Ele escolheu? Sangue, chutes e feridas eram, a sua parte, o que neste mundo, lhe coube. E você, também, desde que nascera, bebezinho rosa e gordo, tinha um lugar reservado (ele já estava lá e você não sabia): o espaço entre as mesas, os papéis e os burocratas. Aquilo, sim, seria a vida. De terno Armani e Ray-ban, você compraria o amor, o sonho e a vida. Você compraria com $grana$ a vida.
Então, inesperado, você achou que decidiu. “Não há escolha”.(Não há?) Levantou-se e foi fazer. Neste dia você cresceu. Neste dia você amadureceu. Neste dia você morreu. Estando vivo, morreu para a vida. Para tornar-se um velho-jovem, de terno Armani, triste e cínico. Não haveria mais nuvens nem poesia. O que era podre se fez mais podre. E tudo se tornou lama. Apenas lama. A utopia da vida morreu na lama.

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