domingo, 9 de março de 2008

A Idade da Inocência, o Pacto e Blade Runner














Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes

Existem três filmes que parecem, mesmo que distantes em termos culturais e temporais interligados em alguma medida. Estes filmes tratam do que fomos, do que somos e do que poderemos ser, não necessariamente nesta ordem. São filmes que podem não obstante de sua natureza como produtos da industria cultural e de massa – permitem ao espectador, caso este seja capaz e queira, fazer alguma reflexão – algo raro atualmente em produtos da industria cultural, cada vez mais fragmentada e caracterizada por uma estupidez massificada. O primeiro deles é um filme de do canadense ou quebequense Denny Arcand que no Brasil está nos cinemas com o inexplicável título Idade da Inocência – já que o verdadeiro título é L´âge des Ténebrès (A Idade das Trevas) – uma clara referência a idade média. No entanto o filme trata dos dias presentes, e é uma estranha mistura de crítica mordaz e violenta e fantasia cômica. Há uma estranha participação do cantor Rufus Rufus Wainwright. O filme é simplesmente aterrorizador, um conto de “fadas” pós-moderno, essencial, mas brutal. Muita gente não o suporta e sai da sala de cinema no meio do filme. O filme será, no entanto, apesar das críticas e farpas um clássico, assim como “O Declínio do Império Americano” e Invasões Bárbaras”, do mesmo Arcand. Por isso, e por outros motivos merece ser visto no cinema, agüente firme, pois a crítica é feroz, e muito pior se comparamos a situação do Quèbec com o Brasil – parece um “Cronicamente Inviável” (filme de Sergio Bianchi) canadense, dirigido diretamente a classe média. Parece ser um “olha o que vocês estão se tornando” ou “olha o que vocês se tornaram” – mas uma dica não leia nenhuma sinopse antes de ver o filme. Estragará o impacto da crítica.
O outro filme, “O Pacto”
[1] (em inglês The suicide Club – título que pode nos remeter ou confundir com a novela de Robert Louis Stevenson que tem o mesmo nome – o nome japonês é Jisatsu saakuru) realizado por Sono Sion também parece ser uma crítica, desta vez vinda do Japão e violentíssima para a frase “o que vocês se tornaram” e a pergunta amarga do filme é “você é o que você é?” ou ainda pior “Você terá tempo de perceber que você não está sendo o que realmente é?”. Ou a pergunta insistente que em todos nós não quer calar, “somente nos realizaremos pela e na morte?” O filme é para aqueles com estomago forte, porém sua crítica é bastante atenuada, pois pode ser visto apenas como um filme policial ou de suspense, cabe a quem assiste, ver nele a crítica. Ele também levanta uma questão importante também levantada no filme de Arcand, a questão da guerra das imagens. E aí podemos lembrar do livro de Serge Gruzinsk: A Guerra das Imagens – de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019), Gruzinsk, assim como já fizeram outros[2] anteriormente, defende que não há cultura pura, e que pelas imagens no tempo e no espaço multiplicam-se as mestiçagens culturais e as culturas híbridas – não livre de conflitos e embates.

"Ainda assim, e sempre à luz da experiência barroca, convém matizar um balanço que não dá importância aos usos atuais da televisão e das formas abundantes da receptividade às imagens. Há que se desconfiar de um balanço que negligencia possíveis aproximações, que minimiza eventuais desvios incentivados pela pelas hoje em dia abertas por tecnologias da imagem eletrônica. Se para qualificar estes tempos, que assistem à multiplicação dos canais de comunicação (vídeo, cabo, satélites, computadores, videogames etc), no México como em outros lugares, e à nova latitude deixada ao espectador para que ele componha suas imagens, foi possível se valer do termo “neobarroco”, é porque a experiência individual e coletiva dos consumidores de imagens da época colonial joga luz nas iniciativas que se esboçam hoje e nas margens que se libertam , mas também nas ciladas escondidas nessa aparente liberdade, nessa aparente desordem do imaginário. [...] Há ainda outros laços entre esse passado mal conhecido [refere-se aos passados pré e colonial mexicanos], o presente que desorienta e os futuros como o do roteiro de Blade Runner imaginado em 1982.Futuros não factícios quanto as origens milagrosas da Guadalupe, mas que às vezes novamente representam o passado. Em Los Angeles, em 20019, os “replicantes” são caçados sob o argumento de que esses escravos andróides são desumanos, assim como cinco séculos antes os conquistadores escravizam e massacram os índios pretextando que eles não têm alma. Mas o essencial não é isso. Vamos encontrá-lo na metrópole titanesca de Blade Runner, imunda, pegajosa e entulhada, com culturas misturadas e “ contaminada”, captada como uma das realizações distantes de 1492. Esse mundo da imagem e do espetáculo é mais do que nunca o mundo do híbrido, do sincretismo e da mistura, da confusão de raças e de línguas como já o era na Nova Espanha. Razão a mais para se procurem elementos de reflexão na experiência barroca colonial, tão exemplar em sua capacidade de tratar o pluralismo étnico e cultural no continente americano, Para repensar, talvez, essa longa trajetória em que progride – inexorável, em toda a sua complexidade, hesitações e contradições – a ocidentalização do planeta. Uma ocidentalização que, por sucessivas sedimentações usou a imagem para depositar e impor seus imaginários, por sua vez, retomando, mestiçados e adaptados pelas populações dominadas. Laboratório da modernidade e da pós-modernidade, caos prodigioso de duplos e de “replicantes” culturais, gigantescos “entrepostos de resíduos” onde se amontoam as imagens e as memórias mutiladas de três continentes – Europa, África, América [eu acrescentaria Ásia – lembrando do Orientalismo – do E. W Said] -, onde se fixam projetos e ficções mais autênticas que a história, a América Latina esconde em seu passado todo o necessário para melhor enfrentar o mundo pós moderno em que nos engolfamos." (GRUZINSKI p.302-303)

Permiti-me essa longa digressão, por que penso que a reflexão de Gruzinski é importante para entender o contexto de produção do três filmes. Blade Runner, o filme de Ridley Scott além de explicitar essa mestiçagem louca – cheia de conflitos e luta – fala muito do que podemos ser ou talvez do que já nos tornamos. Ele também aborda muito o tema importante da memória, do testemunho e do passado. Deixando claro que memória e testemunho não são necessariamente a historiografia e o passado registrado em imagens ou textos, algo se perde sempre.
O filme também é magistral em registrar ao mesmo tempo uma atmosfera de filme noir e cyberpunk – que nos força a pensar no que fazemos de nosso meio ambiente, de nosso espaço geográfico, e território. "I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those ... moments will be lost in time, like tears...in rain. Time to die." (Roy)["Vi coisas que vocês homens nem imaginam. Naves de guerra em chamas na constelação de Orion. Vi raios-C resplandecentes no escuro perto do Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Tempo para morrer".]

As pirâmides – arranha-céus que nos lembram a Tenochtitlan asteca são impressionantes. Outra questão importante colocada no filme é o poder das grandes corporações e a extinção de animais e plantas, e uma total degradação ambiental.
Mas agora, o que me parece mais importante, e que liga os três filmes é uma questão que não se cala nunca: “quem somos nós?” Somente nos realizamos na e pela morte? Viver com medo é ser escravo – essa é uma mensagem que está implícita nos três filmes. Quando nos perguntam também, sobreviver é viver?
[3] "Quite an experience to live in fear, isn't it? That's what it is to be a slave." (Roy)


Nesse momento, quando nos perguntamos quem somos nós, questiono-me se precisamos, das identidades, se, historicamente sabemos que são todas elas artificiais e socialmente, culturalmente construídas como mistificações para manter-nos domesticados, unidos ou subservientes. A figura de Roy no filme me lembra ao mesmo tempo Cristo, na cena do prego (stigmata), e por que se revolta contra o que é, Luzbel ou Lux Fer (a Estrela da Manhã, o portador da luz); o maior anjo que decaí, por não se conformar com seu destino. E é essa pergunta que está nos três filmes... devemos nos conformar com nosso destino ou revoltar-nos contra o que não nos é, contra o que não está em nós. Fica aberta a pergunta.

[1] Não o confunda com o filme com o mesmo nome americano, que não é nada mais do que lixo de entretenimento.
[2] Talvez podemos citar o mexicano José Vasconcelos Calderón com seu Raza Cósmica (José Vasconselos, La Raza Cósmica (Mexico D.F., Espasa Calpe, S.A., 1948) ou ainda falando em termos culturais vale lembrar de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro (O povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil -1995), assim como Octavio Paz com seu clássico livro El labirinto de la Soledad. México: FCE, 2004)
[3] Outras questões podem ser lidas em Blade Runner e nossa Esquizofrenia: http://sturmydrang.blogspot.com/2008/03/blude-runner-e-nossa-esquizofrenia.html

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