domingo, 16 de março de 2008

Meias Finas Pretas





Guilhermo Bazárov de Mont Serrat


Primeiro limpou a lama do rosto, levantou-se tonta. A lua no alto e o reflexo na água da sarjeta. A dor na cabeça, o sangue na boca e o céu de estrelas. A cidade em sono resolveu esquecer, tudo esquecer - o estilhaço no peito e os fantasmas na alma.
Lembrou-se do sonho fosco, quando ousou em tudo acreditar. Teimosa, burra, estúpida.Só o gosto do sangue na boca e a lama do rosto fizeram que aceitasse.
Ela só queria algo mais que estivesse além da iluminocencia azul da TV. Mas ele não era homem para ela. Ela não era mulher para ele, mas tudo aquilo, os beijos em brasa e todos os sonhos além da luz azul da TV... Agora estilhaçados, a tela estilhaçou-se. Sentiu os caquinhos penetrando seu peito, sua alma. Fodida e tremula, de olho roxo.
Não, não podia chorar. Sentou-se na sarjeta e olhou para o céu. Viu todas estrelas e pensou serem as lágrimas da heroína da novela. Como ela, não queria mais se apaixonar. Farta de tudo e de todos. Lembrou-se da promoção, em Caras ou Contigo – não lembrava, aonde alguém ia para longe de navio ou avião - era o grande prêmio no jogo. Queria jogar para poder ir para longe e nada mais sentir. Pensou em sua vida e sentiu-se vazia. Nada era como na TV e nas revistas. Lembrou-se de sua infância tão distante, violenta e triste, teve vontade de esquecer, esquecer e chorar, até o fim do mundo chorar e chorar. E súbito esqueceu.
Levantou-se lânguida-despudorada e blasfemou os céus, sentiu nojo do mundo e da vida, teve náuseas. Limpou da boca o sangue, ajeitou-se: o cabelo e a saia. Foi então tropeçando para o bar da esquina sem culpa, sem dó, sem consciência. O bar escuro amotinado, vozes e vozes - nada na parede e o chão sujo, no banheiro um vomito no escuro. Sentou-se em um canto carregado, onde a fumaça pode bem penetrar em seu pulmão corroído pelo tempo e por estranhos vícios (Beba, Coma, Vista, Corra, Foda-se, Destrua-se, Anule-se, Morra e, sobretudo, Compre!). Não se lembrou de seus inúmeros abortos, apenas olhou para suas canelas finas com meios brancas de bolinhas amarelinhas e pensou como seria bom ter meias finas pretas. Logo olhou para um homem no balcão. Parecia-se com o homem do cigarro, poderia ser um cowboy de chapéu e cavalo. Seus braços grossos e seu peito longo lhe causavam pequenos arrepios na espinha. Sentiu suas pernas trêmulas e sentiu sede, tanta sede e fome que achou que não poderia se levantar, porém, álcool nas veias - levantou-se lânguida-preguiçosa, para encostar-se no balcão - sorriso vulgar no rosto e pose de quem insinua-se. Beijou logo a boca do homem. Inconseqüente, jogou-se no abismo fundo, tudo tão negro, só queria sentir o calor do um quartinho de hotel sujo. E pensar um pouco a ilusão de não se estar só. Quando sua língua tocou o céu da boca daquele homem, quase se sentiu grandiosa e pode esquecer a sua mediocridade infantil. Já na cama, pensou que com aquele homem sim, com aquele sim, teria meias finas pretas. Aquele seria seu homem que lhe daria meias finas pretas. A língua na língua, enroscando-se, o corpo pesando sobre seu corpo e o suor farto procriando. Aquele homem nela tudo liberando, libertando, penetrando-a, sentia-se como a heroína da novela: rica, linda e poderosa. Por um instante acreditou ser Isabela Cristina e pediu para o homem chamá-la de Isabela Cristina. Queria agora só ouvir um pouco aquela musica romântica da novela e ter meias finas pretas.
E lá pela janela penetrava, possessiva e estranha, a luz azul luminescente.

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