sábado, 19 de abril de 2008

ESTUDOS CULTURAIS LATINO-AMERICANOS CONTEMPORÂNEOS
















PERIFERIA, SUBALTERNIDADE, DIFERENÇA E HIBRIDISMO,
Ângela Freire Prysthon
(Universidade Federal de Pernambuco)
De: http://www.rizoma.net/interna.php?id=154&secao=panamerica

Theodore de Bry

O cosmopolitismo pós-moderno está sublinhado pela suposta globalização da economia mundial e
pela série de remapeamentos culturais implicados nela. Uma das primeiras conseqüências da globalização é o enfraquecimento da noção de estado-nação, o que pode sugerir, de certa maneira, a gradual desierarquização dos países europeus ou dos Estados Unidos como centros irradiadores de tendências culturais a nível mundial. Sem que isso chegue a significar o desaparecimento das grandes cidades como potências culturais.

Nova York, Paris, Londres ainda são tanto algumas das peças mais fundamentais do imaginário metropolitano do Ocidente, como líderes incontestes de tendências artísticas e do mercado cultural mundial. Essas metrópoles lançam o periférico como principal tendência das modas culturais de fim de milênio. Ou seja, o próprio centro desestabilizando a condição de centro com o multiculturalismo —o que pode deixar dúvidas em relação a essa desestabilização: modismo passageiro? Neo-colonialismo camuflado? Exploração cultural?

É inegável, entretanto, que transformações inéditas ocorreram, principalmente no nível acadêmico, dos Estudos Culturais, no sentido da descentralização do cosmopolitismo, do redimensionamento do cânone cultural ocidental e estabelecimento de políticas internacionais da teoria. Os Estudos Culturais se estabelecem como o terreno por excelência tanto para o estudo como para o próprio desenrolar dessas transformações. É neles que se revela mais profundamente o grau de globalização cultural e como se está dando a penetração não só dos bens culturais periféricos, como também das teorias pós-coloniais na metrópole. Contrastados com disciplinas mais tradicionais como História da Cultura, Antropologia, Teoria Literária, os Estudos Culturais, especialmente a partir dos anos 90, fornecem um ponto de vista muito mais abrangente —sendo simultaneamente bem específico na sua historicidade—, condensam um instrumental capaz de dar conta da contemporaneidade de maneira desmistificadora e desierarquizada e servem como ponto de partida para o estabelecimento de uma política da diferença que desafie a hegemonia nordocêntrica, redefina a modernidade a partir de novos termos, aponte alternativas para um padrão cultural baseado na cópia e na imitação e garanta voz a sujeitos que outrossim não tiveram direito a voz.

“As novas políticas culturais da diferença não são nem simplesmente oposicionistas ao contestar a tendência dominante (patriarcal) pela inclusão nem transgressora no sentido vanguardista de chocar platéias burguesas convencionais. Mais que isso, elas são distintas articulações de contribuidores talentosos (e normalmente privilegiados) para a cultura, que desejam se alinhar com pessoas desmoralizadas, desmobilizadas, despolitizadas e desorganizadas com o objetivo de reforçar e possibilitar a ação social e, se possível, alistar uma insurgência coletiva pela expansão da liberdade, da democracia e da individualidade”.(1)

Se pode parecer ridiculamente otimista colocar tamanhas expectativas numa teoria e numa apreensão claramente pós-moderna da história, por outro lado são evidentes as conquistas intelectuais tanto dos Estudos Culturais, como da teoria pós-colonial na revisão das desigualdades da modernidade e na apresentação de alternativas teóricas aos modelos econômicos, sociais e políticos do “Primeiro Mundo”. Neste contexto, a importância da revisão de um conceito como o de cosmopolitismo parece inegável inclusive por suas potencialidades de aplicação como uma terminologia muito mais precisa e aceitável que “relativismo cultural” ou “internacionalismo”.

O cosmopolitismo tal como vinha se manifestando ao longo do século XX na periferia parece estar profundamente modificado e virtualmente superado. Uma conceituação
contemporânea do cosmopolitismo tem que levar em conta os seguintes fatores: 1) uma nova configuração urbana que torna caduca a noção da vivência da cidade como base do cosmopolitismo: algumas das maiores metrópoles do mundo não estão no centro, mas na periferia —Cidade do México, Jacarta, São Paulo, Istambul; 2) a dissolução do chamado Segundo Mundo; 3) a emergência dos países asiáticos como potências econômicas; 4) a hibridização cultural da maioria dos países periféricos e especialmente dos países centrais (embora, simultaneamente veja-se o crescente isolamento cultural de alguns países muçulmanos); 5) a diáspora dos intelectuais da periferia para o “Primeiro Mundo”; 6) o avanço gigantesco das redes de comunicação: canais de tv a cabo, conglomerados da imprensa abrangendo vários países e, fundamentalmente como maior revolução, a Web, a Internet.

Estes seriam os principais elementos para que se fundem novos parâmetros para as culturas periféricas.

O pós-colonialismo, por exemplo, reafirma, como antes o terceiro-mundismo, mas agora de modo muito mais articulado teoricamente, o papel do subalterno na História e a própria História subalterna. A teoria pós-colonial é uma empresa de descolonização, mas não a descolonização concreta (algo que já foi mais ou menos realizado) das lutas armadas e acordos militares, mas a descolonização da História e da teoria, uma abordagem de fato alternativa do Ocidente.

Partindo do pós-estruturalismo, as mais relevantes teorias pós-colonialistas procuram estabelecer um ponto de vista onde esteja sempre implícita a desconstrução de toda a terminologia relacionada com os conceitos de Ocidente, Outro, Mesmo e, naturalmente, subalterno. Atuando em diversos campos e utilizando-se simultaneamente de diferentes paradigmas —feminismo, pós-estruturalismo, psicanálise, crítica do colonialismo, teoria literária, etc—, uma das principais e mais prolíficas representantes da teoria pós-colonial, Gayatri Chakravorty Spivak vai prob
lematizar tais conceitos partindo do questionamento sobre a (im)possibilidade do subalterno poder ter voz:

“De acordo com Foucault e Deleuze (no Primeiro Mundo, sob a padronização e arregimentação do capital socializado, embora eles não pareçam reconhecer isto), os oprimidos, se dada a chance (o problema da representação não pode ser contornado aqui), e visando a solidariedade através de alianças políticas (uma temática marxista está em ação aqui), podem falar e saber de suas condições. Devemos agora nos confrontar com a seguinte pergunta: No outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e da educação imperialista a suplementar um texto econômico anterior, podem os subalternos falar?...”(2)

O pós-colonialismo vai configurando-se, pois, como a tentativa de responder a essa questão.

De teoria estritamente relacionada com as ex-colônias de língua inglesa a abordagem de muito maior escopo, os estudos pós-coloniais reinserem o debate da identidade nacional, da representação, da etnicidade e da diferença no centro da história da cultura mundial contemporânea.

Comentando a obra de Spivak, Robert Young afirma a classificação de subalterno tanto para a historiografia produzida pelo “Outro”, como o sujeito que a produz.

“O historiador(a) subalterno(a) não apenas localiza instâncias históricas de insurreição mas também se alinha com o subalterno como uma estratégia para ‘levar a historiografia hegemônica à crise’- o que chega a ser uma boa descrição da orientação estratégica da própria obra de Spivak”.(3)

Ou seja, ao contrário da antropologia clássica ou da historiografia tradicional, a teoria pós-colonial representa a voz da periferia diretamente, mais do que isso —já que o pós-colonialismo contesta uma já ultrapassada concepção de representação—, é a própria voz do subalterno que está em jogo. A reescritura subalterna da História, ou a desconstrução do Ocidente feita pela periferia, portanto, implica num constante ataque à hegemonia ocidental e, se não uma completa inversão, uma reavaliação dos valores do cosmopolitismo convencional, uma reacomodação do cânon cultural, o descentramento anunciado pelas teorias pós-modernas, enfim. O que não significa, contudo, que a revisão do cosmopolitismo implícita no pós-colonialismo seja a proposta de um relativismo cultural generalizado, a absolutização do relativismo. Como sugere Bruce Robbins, o cosmopolitismo pode ser uma denominação mais apropriada para a noção de “estado híbrido” e para a abrangência de certos aspectos do internacionalismo dos anos 60:

“O interesse do termo cosmopolitismo se situa, assim, não em sua total extensão teórica, onde se torna uma fantasia paranóica de ubiqüidade e onisciência, mas de preferência (paradoxalmente) em suas aplicações locais, onde o ideal irrealizável produz pressão normativa contra alternativas tais como, digamos, a ‘hibridização’ em voga”.(4)

O cosmopolitismo pós-moderno, então, vai se constituindo como um cosmopolitismo quase que necessariamente periférico, tanto pelo problema da representação mencionado anteriormente, como pela óbvia e inerente experiência cosmopolita vivida no cotidiano da maioria das regiões periféricas. Embora isso se aplique à experiência do mundo urbanizado como um todo. Grandes metrópoles “nordocêntricas” como Nova York, Londres e Paris também têm no seu cotidiano uma experiência que inegavelmente se chama cosmopolitismo periférico. As zonas de contato entre “Primeiro” e “Terceiro” Mundos vão se multiplicando nas duas regiões e, como seria de se esperar, no destroçado “Segundo”. A existência de bolsões de “Terceiro Mundo” no “Primeiro Mundo” e seu contrário, o “Primeiro Mundo” no “Terceiro Mundo” são não apenas a confirmação do cosmopolitismo periférico, como também uma condição sine qua non do capitalismo transnacional e o sinal de que um “mundo” somente está cada vez mais parecido na sua diversidade. Justamente no espaço intersticial, no fluido território intermediário, nessa zona de negociação entre “mundos”, é que está localizado o arcabouço cultural que serve de objeto para a teoria pós-colonial e o instrumental teórico para analisá-lo.

“A crítica formada neste processo da enunciação de discursos de dominação ocupa um espaço que não está nem dentro nem fora da história da dominação ocidental mas numa relação tangencial com ela. Isso é o que Homi Bhabha chama de entre-lugar (in-between), híbrida posição de prática , ou o que Gayatri Chakravorty Spivak denomina catacrese; ‘revertendo, deslocando, e atacando o aparato de codificação de valores.’”(5)

O lugar do subalterno na configuração da cultura contemporânea e na crítica, análise e teoria dessa cultura, portanto, está muito diferenciado em contraste com as disciplinas mais tradicionais. É um ponto de observação privilegiado no sentido da multiplicidade desse espaço intermediário. Mesmo que tantas outras teorias e estéticas já houvessem problematizado conceitos como representação, identidade, outridade, hibridismo, colonização, Ocidente, Oriente; com o pós-colonialismo esses elementos são colocados num marco de referências que, ao invés de simplesmente inverter ou descartar termos e hierarquias, vai questioná-los na sua essência e na sua malha de interrelações, vai pensar as condições de possibilidade, continuidade e de utilidade da sua construção.

“O pós-colonialsmo representa uma resposta a uma necessidade genuína, a necessidade de superar a crise de entendimento produzida pela inabilidade de velhas categorias para descrever o mundo.”(6)

O que não corresponde a dizer que o pós-colonialismo é teleologicamente positivo em relação à pós-modernidade ou às micropolíticas de final de milênio. Não se trata de simplesmente ser ingenuamente “otimista” por causa da globalização, por causa do hibridismo cultural e por uma suposta superação da experiência colonial, ou, no campo da estética, de tentar inverter os valores do cânon à moda da “antropofagia” brasileira modernista, por exemplo. O pós-colonialismo tampouco é um mero reflexo das tendências politicamente corretas surgidas na academia primeiro-mundista a partir do final da década de 80.

No caso da América Latina, o pós-colonialismo vai estar irremediavelmente associado às teorias pós-modernas e ao discurso pós-estruturalista. Aí, a teoria pós-colonial vai
desenvolver-se sobretudo como instrumental auxiliar para os Estudos Culturais. Neste contexto, sobressai-se especificamente a linha de trabalho sobre o hibridismo na cultura latino-americana. Hibridismo, híbrido, hibridização são conceitos-chave dos Estudos Culturais latino-americanos dos anos 90, prolongando discussões que haviam iniciado na abordagem do pós-moderno latino-americano na década anterior. Como havia sido dito antes, a obra de Néstor García Canclini ocupa um posto extremamente influente no debate sobre o estado híbrido da cultura latino-americana. Seu livro Culturas híbridas— Estrategias para entrar y salir de la modernidad postula a necessidade de uma abordagem “transdisciplinária” para a compreensão da cultura latino-americana contemporânea, esta fundamentalmente marcada por uma intensa “heterogeneidade multitemporal”. Canclini tenta ademais redefinir a modernidade —e tangencialmente a pós-modernidade — tendo em conta os processos de hibridização da América Latina.

“As reconversões culturais que analisamos revelam a modernidade não é apenas um espaço ou um estado no qual se entra ou do qual se emigra. É uma condição que nos envolve, nas cidades e no campo, nas metrópoles e nos países subdesenvolvidos. Com todas as contradições que existem entre modernismo e modernização, e precisamente por elas, é uma situação de trânsito interminável na qual nunca se encerra a incerteza do que significa ser moderno.”(7)

É evidente a preocupação latino-americana com os conceitos relacionados com a pós-modernidade.

Tal preocupação surge indubitavelmente da complexidade de uma modernidade desigual e em descompasso com o centro (o que não nega necessariamente a desigualdade e o descompasso da modernidade no centro também). A modernidade e todos os discursos que a rodeiam — modernismos, pós-moderno, pós-modernismos — ainda formam o eixo principal dos Estudos Culturais latino-americanos. Entretanto, são as condições da modernidade latino-americana no final do século XX que vão ser focos de interesse dos teóricos latino-americanos.

Nessas condições estão implicados o hibridismo, o ser periférico, as noções de caráter nacional, globalização, colonialismo e dependência. Apresentando um colóquio de cultura latino-americana em Yale em 1994, Josefina Ludmer enumera certos temas e discursos que vão aparecer nos trabalhos apresentados:

“Há uma tonalidade, um conjunto de lugares-comuns, que move nossa máquina ‘fim de século’: modernidade e pós-modernidade, nação e narração; minorias e excluídos, identidades nacionais, sexuais, raciais, culturais (‘gêneros’ de discursos); a representação e a política; territorializações e desterritorializações, periferias, fronteiras, margens e corpos; o problema do leitor e da existência mesma da literatura na era da informação visual. E a cultura latino-americana no interior destes lugares-comuns.”(8)

Esse conjunto de termos, além de temas específicos do colóquio, de maneira geral representa grande parte do novo paradigma das ciências sociais latino-americanas, um paradigma que tem muitos pontos em comum com a teoria pós-colonial, mesmo que não seja completamente coincidente. É importante notar que, especialmente a partir da década de 90, a teoria latino-americana contemporânea explicita a sua conformação às metodologias e processos próprios aos Estudos Culturais, começa a delinear as conexões mais diretas com a teoria pós-colonial e fixar as especificidades dos Estudos Culturais latino-americanos:

“Como esta mesma heterogeneidade e latência arcaica que vai de mãos dadas com a aspiração de modernidade é transformada numa fonte para o exotismo latino-americano na mente européia e norte-americana, ela repercute na América Latina com o peso prestigioso dessas culturas (exóticas, por sua vez, aos olhos da América Latina), catalizando, com ‘consciência de identidade’, o que era meramente a projeção de um Outro idealizado. Neste sentido, os Estudos Culturais latino-americanos, sejam eles conduzidos de dentro do continente ou de fora, assumem um contra-efeito ideológico que não é aparente no caso de puros e simples Estudos Culturais”.(9)

Como nos Estudos Pós-Coloniais de língua inglesa, nos Estudos Culturais latino-americanos também está em jogo uma teoria da representação que necessariamente tem que levar em conta o problema da subalternidade. Inspirados pelo Subaltern Studies Group, uma organização de acadêmicos sudasiáticos liderados por Ranajit Guha, alguns acadêmicos latino-americanos propuseram a formação de um grupo parecido com o Founding Statement (Discurso de fundação) do Grupo latino-americano de estudos subalternos para contrapor à historiografia tradicional da elite um estudo da cultura latino-americana que recupere as especificidades da subalternidade e corrija as distorções estabelecidas pela abordagens hegemônicas. Para isso é imperativa para o grupo uma revisão não só do conceito de subalternidade, como também o profundo escrutínio das concepções de nação, identidade nacional, política e cultura implicadas na história prévia do pensamento latino-americano:

“Para representar a subalternidade na América Latina, sob qualquer forma que ela tome onde quer que apareça – nação, fazenda, lugar de trabalho, lar, setor informal, mercado negro – para encontrar o espaço em branco onde ele se expressa como um sujeito político, requer de nós explorar as margens do estado. (...) Devemos ser cuidadosos, no processo de conceitualizar a subalternidade, para não nos enredarmos no problema, dominante em articulações anteriores de liberação “nacional” (...), da própria elite nacional como subalterna, isto é, como reprodutora, tradutora, intérprete, editora: evitar, em outras palavras, a construção de intelligentsias pós-coloniais como “arrendatárias” na hegemonia cultural metropolitana”(10)

Mas, exatamente no foco de todo repensar sobre a subalternidade e suas relações com a identidade nacional e as políticas de superação do subdesenvolvimento está a dualidade centro—periferia. Neste sentido, o debate sobre o pós-moderno serve, apesar de sua multiplicidade de “encarnações”, propósitos e definições, para designar precisamente a crise de centralidade pela qual passa o Ocidente. Tal crise é uma das pedras de toque da teoria latino-americana contemporânea que tem buscado repensar a identidade, o hibridismo e a diferença cultural da região a partir do descentramento pós-moderno. Curiosamente, o descentramento vai ser muitas vezes tomado como uma inversão de valores. De repente, as margens passam a centro e o centro a margem, numa celebração catártica da diferença.

“A singularidade cultural é o campo utópico do subalternista. O subalternista debe ao mesmo tempo afirmar, e subseqüentemente encontrar e representar (quer dizer, precisamente, não ‘construir’), singularidade cultural entendida como diferença da formação cultural dominante”.(11)

Esse viés de interpretação, corrente em diversas áreas e autores e com diversos níveis de concordância com ele, desde a abordagem literária de Carlos Rincón sobre a diferença latino-americana a partir do boom do realismo mágico(12); à recuperação da antropofagia modernista brasileira pelos irmãos Campos e pelas teorias da tradução(13); a diversos trabalhos da chilena Nelly Richard(14); à definição de uma literatura pós-modernista na argentina por Santiago Colas(15); à própria idéia de “reconversão cultural” de García Canclini ou à obra sobre a pós-modernidade de Beatriz Sarlo(16), pode revelar-se controverso e ingenuamente otimista.

Então é preciso tomar cuidado sobretudo com a apropriação feita pelo neo-liberalismo do discurso da diferença. Faz parte do próprio princípio de manutenção da hegemonia a apropriação das diferenças. A identidade cultural latino-americana é, portanto, apropriada por um sistema “multiculturalista” por sua “diferença”, mas que de fato seria apenas uma “diferença” a mais. Em um certo sentido, o neo-liberalismo admite, então, a diferença simplesmente porque estas formam um quadro de igualdade, um sistema de “diferenças uniformes”.

“Isso significa que a transparência do social foi simplesmente transferida da singularidade e inteligibilidade de um sistema de equivalências para a singularidade e inteligibilidade de um sistema de diferenças”.(17)

Por outro lado, cabe lembrar —algo que já foi mencionado acima— que um sistema que valoriza a diferença, estabelece uma espécie de valor positivo para sociedades culturalmente mais heterogêneas, caso da América Latina. O que por sua vez proporciona as abordagens celebratórias as quais mencionamos anteriormente. Ou seja, simultaneamente ao reconhecimento das possibilidades desse processo, há que levar-se conta também os perigos da inversão de hierarquias culturais ou absolutização da diferença. Como avisa Nelly Richard,

“Celebrar a diferença como um festival exótico – um complemento da outridade destinado a matizar, mais que subverter, a lei universal – não é o mesmo que dar ao sujeito desta diferença o direito de negociar suas próprias condições de controle discursivo, para exercitar sua diferença no sentido intervencionista de rebelião e pertubação, em vez de coincidir com os significados pré-determinados do repertório oficial da diferença”.(18)

Além disso, o hibridismo, a diferença e o reconhecimento de heterogeneidade cultural latino-americana servem como um princípio de contestação muito vago da hegemonia nordocêntrica, que os mais pessimistas não hesitam em subestimar como parcelas minúsculas de uma ideologia da globalização que serve a propósitos neo-liberais. Uma das saídas dessa encruzilhada é mostrar-se atento às armadilhas da inversão total do esquema binário centro-periferia e marcar a fundamental distinção entre o auto-exotismo e a consciência crítica do que constitui a identidade cultural latino-americana, para que realmente se concretizem os fundamentos de um cosmopolitismo periférico.

NOTAS

1. Cornel West, “The New Cultural Politics of Difference”, The Cultural Studies Reader. [Simon During, ed.] London/New York: Routledge, 1993, pp. 203-17, p. 204.

2. Spivak, “Can the Subaltern Speak?”, The Post-colonial Reader, op. cit., pp. 24-28, p.25.

3. Robert Young, White Mythologies. Writing History and the West. London/New York: Routledge, 1990, p.160.

4.Bruce Robbins, “Comparative Cosmopolitanism”, Social Text 31-32 (1992), pp.169-86, p.183.

5. Gyan Prakash, “Postcolonial Criticism and Indian Historiography”, ibidem, pp.6-18, p.8.

6. Arif Dirlik, “The Postcolonial Aura: Third World Criticism in the Age of Global Capitalism”, Critical Inquiry 20 (1994), pp.328-356, p. 352.

7. Néstor García Canclini, Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad. Mexico: Grijalbo, 1990, p.333.

8.Josefina Ludmer, “El Coloquio de Yale: máquinas de leer ‘fin de siglo’”, Las culturas de fin de siglo en América Latina. [Josefina Ludmer, ed.] Rosario: Beatriz Viterbo, 1994, pp.7-24, p.9.

9. Nicolau Sevcenko, “Cultural Studies Questionnaire”, Travesia . Journal of Latin American Cultural Studies 2:2 (1993), pp.135-49, p. 148.

10. Latin American Subaltern Studies Group, “Founding Statement”, boundary 2. 20:3 (1993), pp.110-21, p. 119.

11. Alberto Moreiras, “Elementos de articulación teórica para el subalternismo
latinoamericano. Candido y Borges”, Revista Iberoamericana. Vol LXII, 176-77 (1996), pp. 875-91, p. 876.

12. Carlos Rincón, “The Peripheral Center of Postmodernity: on Borges, García Márquez and Alterity”, ibidem, pp. 162-79.

13. Else Ribeiro Pires Vieira, “Nudity Versus Royal Robe: Signs in Rotation from (In)Culture to (In)Translation in Latin America”, Brazil and the Discovery of America.
Narrative, History, Fiction. [Bernard McGuirk, Solange Ribeiro de Oliveira, eds.] Lewiston/Queenston/Lampeter: The Edwin Mellen Press, 1996, pp. 1-15.

14. Nelly Richard, “Postmodernism and Periphery”, Third Text 2 (1987/1988), pp.5-12.

15. Santiago Colás, Postmodernity in Latin America: The Argentine Paradigm. Durham: Duke University Press, 1994.

16. Beatriz Sarlo, Escenas de la vida posmoderna. Intelectuales, arte y videocultura en la Argentina. Buenos Aires: Ariel, 1994.

17. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemony & Socialist Strategy. Towards a Radical Democratic Politics. London/New York: Verso, 1985, p.182.

18. Nelly Richard, “Cultural Peripheries: Latin America and Postmodernist Decentering”, op. cit., ver nota 16, pp.156-61, p. 160.

(N. do Rizoma: Todas as citações textuais de textos em língua estrangeira – inglês e espanhol – foram traduzidas pelos editores deste site para facilitar a compreensão dos leitores).

Fonte: INTERCOM - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

Nenhum comentário: