quinta-feira, 18 de junho de 2009

Informação de qualidade e o jornalismo brasileiro




Na última quarta (17), o Supremo Tribunal Federal brasileiro decidiu pelo fim da exigência do diploma para o exercício do jornalismo. A decisão foi oriunda de um recurso extraordinário, interposto pelo Ministério Público Federal e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo.

Como o tema é polêmico e tem gerado muitos pontos de vista, cabe passar rapidamente pelos argumentos que fundamentaram a decisão. Não se trata de um argumento de autoridade, apenas uma informação preliminar – visto que a polêmica foi gerada a partir dos fundamentos da Constituição Federal. Se o leitor já estiver a par da discussão, pule esta parte.

São citados na CF os artigos 5, 102 e 220, nos trechos já separados abaixo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

A exigência de diploma do curso superior de jornalismo para exercício da profissão, como muitos profissionais sabem, data do regime militar e está prevista no art. 4º, inciso V, do Decreto-Lei n° 972/1969 (leia aqui).

O MPF cita ainda violação ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. Reproduzo abaixo o artigo (orignal aqui, em PDF).

Artigo 13º – Liberdade de pensamento e de expressão.

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda a propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

O voto final pode ser acessado aqui.

Dado esse cenário, é saudável retomar a discussão, sem esquecer que claramente os fundamentos não são baseados em abstrações dos juristas no alto de seus cargos, e sim em uma ampla discussão pública, em que múltiplas partes estiveram envolvidas durante décadas.

Se o foco, pra começo de conversa, for o diploma em si, acho a discussão inútil. Nunca me posicionei e continuo a não me posicionar, porque para mim pouco muda. O campo da comunicação já está totalmente aberto. Blogs, revistas, redes de comunicação. O mundo mudou. Gostaria de ver uma pesquisa indicando que muda alguma coisa a partir desta decisão. Duvido, mas me interesso na pesquisa.

Nenhum dos nossos nobres jornalistas conhece gente do campo profissional da Administração fazendo coluna em revista semanal? Ou médico em programa televisão? Todos sabemos que nas redações ninguém pede diploma. Se houvesse de fato fiscalização do Ministério do Trabalho, a grande imprensa parava. TV Globo, JB, O Globo, Estadão, FSP, todos os meios paravam, com raras exceções. Todos sabem disso.

A pessoa é chamada porque efetivamente faz jornalismo, porque sabe fazer jornalismo. O meio de comunicação que não souber fazer jornalismo rapidamente perderá, em tempos de internet, a credibilidade – o bem maior do jornalismo. E a Folha de S. Paulo, diga-se de passagem, tem se esforçado – vide o spam sobre a Dilma que virou manchete. E não só a Folha. A prática, aliás, se repete e virou a vergonha nacional de uma classe, em tempos de vigilância virtual. Honestamente, que acha que o jornalismo brasileiro é o locus da ética pública precisa se informar. Nenhum jornalista ou comunicador da grande imprensa acredita nisso. Existem bons jornalistas apesar do jornalismo que se faz.

É uma saída confortável dizer que essa decisão piora o quadro. A internet expôs uma crise que não é de hoje. Essa crise, na minha opinião, se chamacrise de representatividade. Há muito tempo a imprensa de grande alcance não é mais representativa, no sentido que Negri dá (por exemplo). São vozes que abandonaram suas tentativas sempre frustradas de influenciar na pauta, sem nunca serem ouvidas, e não querem mais ficar restritas à seção de “cartas”.

O jornalismo brasileiro não entendeu, por exemplo, que a seção de cartas foi extinta com o advento da internet. O leitor que tem dois reais pra comprar um jornal tem dinheiro pra pagar horário na lan house. E prefere a lan house. Entre muitas outras questões. E, por isso, o jornalismo deixou de ser, pouco a pouco, locus principal do debate. Migramos (todos) para a rede – social e tecnológica. E o jornalista perdeu sua centralidade (mas não sua importância, óbvio, apenas a centralidade).

Eu questiono: as pessoas pararam de ler jornal por causa da decisão do STF? Não, eles estavam parando, antes, e parando cada vez mais, e continuam parando. Baixou a escolaridade? Não. Aumentou. Mudaram, isso sim, os hábitos. Dar um tiro no pé é não entender que o mundo mudou..

E pra quem acha que está mal a “classe”, eu tenho interface profissional com médicos e advogados, por dever de ofício e estudo. Ambos (a “classe”) estão ameaçados. Tentando se defender como podem, mas extremamente ameaçados.

No caso dos médicos, em alguns casos se fecham em suas sociedades, tentando processar por todos os lados quem os ameaça: médicos estrangeiros, práticas orientais. Tudo é alvo, porque a profissão anda mal das pernas. Mas eles foram mais inteligentes: melhoraram primeiro o ensino, para depois pensar no “mercado”. Fortaleceram a associação de educação médica, se organizaram para reivindicar a qualificação rigorosa dos cursos em todo o país. A FENAJ também tentou, mas abandonou equivocadamente sua preocupação central com o ensino (leia aqui) pra priorizar a bandeira do “jornalista por formação”, que não centra a questão principal: qual formação?

No corpo editorial de três revistas que eu participo, há historiadores, sociólogos, educadores, assistentes sociais… e jornalistas. Eu mesmo tento convencer amigos há anos que sou radialista, sem sucesso. Curiosamente, a diversidade das informações é maior nestes meios independentes, porque não se fala só em política e polícia. Qual a proposta que temos, por exemplo, para que o ensino nas faculdades brasileiras não forme os jornalistas que conduzirão o repeteco monotemático da pauta da grande imprensa? Ou acreditamos que o que existe essa imprensa representa, de fato, toda a diversidade do nosso país e do mundo?

O ministro Franklin Martins colocou recentemente uma visão redonda, na minha opinião: o aquário está “se achando”. Pior para o jornalismo e para os jornalistas – principalmente aqueles que juram de pés juntos questionar o aquário, mas estão cada vez mais como peixes fora d’água dentro de um modelo de jornalismo falido.

Leio atentamente o debate que atualmente explode na internet, sobre o tema. E percebo que tudo foge da questão corporativa. São os problemas do jornalismo capitalista (quem tem “donos”), a falta de ética de alguns editores, o exemplo valoroso de grandes jornalistas não-formados, a conceituação ampliada da questão da informação (que nunca terá dono). Enfim, um mundo de coisas. No fim das contas, pensa só, uma das consequências da decisão do STF é, na verdade, um grande benefício: a mobilização – agitação, reorganização, reconfiguração, fortalecimento – dos jornalistas, que agora vão procurar novas formas de se organizar. E podem se unir de modo mais inteligente.

O que não é razoável é entrar num debate em que jornalistas que fazem o jogo da grande imprensa, com todo o esquema da pauta pronta, dizem, agora, que são os porcos capitalistas que determinaram a votação, em favor do Capital. Tô fora.

E olha que eu acho útil a imagem do Capital – que deve ter recebido essa notícia como alguém que comemora ao ter ganho 100 reais na raspadinha da lotérica. Nada demais. Nada de novo.


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