sexta-feira, 5 de junho de 2009

Sobre o Castigo


Consideremos agora os três objetivos principais a que se propõem o castigo: controle, regeneração e exemplo. É preciso admitir que, embora convincentes, nenhum dos argumentos a favor destes objetivos chega a ser irresistível. Qualquer um deles provocará certas considerações que nos obrigarão a duvidar da conveniência do castigo.
O primeiro e mais inocente de todos os tipos de coação é aquele empregado para repelir uma demonstração concreta de força. Embora tenha muito pouco a ver com qualquer forma de instituição política, merece, mesmo assim, ser examinado em primeiro lugar. Suponhamos, por exemplo que haja uma espada apontada contra o meu peito, ou de outra pessoa qualquer, sob ameaça de morte iminente. Neste caso, devo ocupar-me de evitar um dano que parece inevitável e parece não haver tempo para experiências. E no entanto, mesmo aqui, uma investigação rigorosa nos sugerirá dúvidas importantes. Os poderes da razão e da verdade são ainda incomensuráveis.
A verdade que um homem não consegue comunicar em menos de um ano, outro poderá transmitir numa quinzena. A menor palavra pode ter uma compreensão poporcional ao seu tamanho. Quando Marius recebeu o soldado que fora enviado à sua cela para assassiná-lo, dizendo-lhe com olhar severo e expressão cheia de autoridade:"Miserável! Tens a temeridade de matar Marius!" e com esas poucas palavras colocou-se em fuga, foi porque a grandeza da idéia concebida pela sua mente chegou com força irresistível à mente do seu algoz. Ele não tinha armas para resistir, nem ímpeto para ameçar; estava debilitado e sozinho. Foi apenas pela força do sentimento que conseguiu desarmar seu exterminador. Mesmo que houvesse, neste caso, falsidade e preconceito na idéia transmitida, podemos deixar de acreditar que a verdade é ainda mais forte? Seria bom para a espécie humana se a esse respeito todos pudessem ser como Marius habituados a colocar uma confiança indômita na força da inteligência. Quem poderá dizer o que seria impossível para homens assim ousados e movidos pnas pelos sentimentos mais puros? Quem poderá dizer até onde poderia ir a espécie humana, se deixasse de respeitar a força nos outros e se recusasse a utilizá-la em seu próprio proveito?
A diferença que existe, entretanto, entre essa espécie de coação e a outra espécie que geralmente recebe o nome de castigo é bastante óbvia. O castigo é utilizado contra o indivíduo cuja violência já cessou de existir. No momento, ele não está ocupado em qualquer atividade hostil contra a comunidade ou qualquer um de seus membros. É provável que esteja tranquilamente dedicado a ocupações que lhe são benéficas e não fazem mal a ninguém. Sob que pretexto deve este homem sofrer qualquer tipo de violência?
Para previnir. Previnir o que? Previnir qualquer mal que ele pudesse vir a cometer. É este exatamente o argumento que tem sido utilizado para justificar as mais medonhas formas de tirania. Que outros argumentos justificaram a inquisição, os espiões e as várias formas de censura dirigidas contra a opinião? Sob a alegação de que há uma íntima ligação entre as opiniões dos homens e a sua conduta; que sentimentos imorais levam, muito provavelmente, à prática de atos imorais. Em muitos casos, não há razão que nos leve a supor que um homem, que já roubou uma vez, tem mais probabilidade de voltar a fazê-lo do que aquele que dissipou sua fortuna nas mesas de jogo, ou do que um outro acostumado a afirmar que, numa emergência, não teria escrúpulos de recorrer a este expediente.
Nada pode ser mais óbvio do que pensar que, sejam quais forem as precauções tomadas com relaçãoao futuro, só com extrema relutância a justiça concordaria em incluir entre essas precauções os atos de violência contra o meu vizinho. Atos que tanto mais injustos, quanto supérfluos. Por que não me armar de cautela e energia, em vez de fazer encacerar todos os homens que minha imaginação ordena que eu tema, paraque eu possa passar meus dias em tranquila ociosidade?
Se em vez de aspirar ao dóminio sobre um vasto território, alimentando a sua vaidade com idéias de império como até agora fizeram, as comunidades se contentassem com um pequeno distrito e uma cláusula prmitindo a formação de uma confederação em caso de necessidade, cada indivíduo viveria então aos olhos do público. A desaprovação dos vizinhos, um tipo de coação que não tem origem nos caprichos dos homems mas no sistema do universo, iria inevitavelmente obrigá-lo a regenerar-se ou a emigrar. Resumindo todos os argumentos contra este tema, diríamos que todo o castigo infligido com o objetivo de previnir é um castigo sob suspeita, a forma de punição mais contrária à razão e mais arbitrária quanto à sua aplicação que poderia ter sido imaginada.
O segundo objetivo a que se propõe o castigo seria, pelo que se pode imaginar, a regeneração. Sob este aspecto, igualmente há várias restrições a fazer. A coação não convene nem concilia, mas, ao contrário, acaba por alienar a mente daquele contra o qual é utiliza-da. A coação não tem nada a ver com a razão, não sendo, portanto, a forma mais adequada de cultivar a virtude. É certo que a razão nada mais é do que um confronto e uma comparação entre várias emoções e sentimentos, mas é preciso que estes sentimentos sejam aqueles originalmente provocados pelos fatos e não quaisquer outros que uma vontade arbitrária, estimulada pelo poder de que dispõe, quiser provocar. A razão e onipotente; se minha conduta estiver errada, uma simples observação, partindo de uma visão clara e abrangente, fará com que pareça tal aos meus olhos. Nem é provável que haja em mim qualquer obstinação perversa que me leve a persistir no erro contra todas as recomendações com as quais a virtude pudesse estar investida e toda a beleza com que pudesse ser exibida.
Mas a isto poder-se-ia responder dizendo:"esta visão sobre o assunto pode ser realmente verdadeira em sentido abstrato, mas não é no que concerne à presente inperfeição das capacidades humanas. O requisito essencial para a reforma e o aperfeiçoamento da espécie humana parece ser o estímulo da mente. É por esta razão que a escola da adversidade tem sido tantas vezes considerada como escola da virtude. Quando a vida transcorre sem percalços, nossas capacidades ermanecem adormecidas. Mas quando surgem as dificuldades, dir-se-ia que a mente reage à altura. As dificuldades despertam a força e geram a energia. Muitas vezes acontece que quanto mais reprimido eu estiver, mais crescerão minhas capacidades, até que eu acabarei destruindo todos os obstáculos erguidos pela tirania."
A idéia sobre os benefícios da adversidade baseia-se num erro bastante óbvio. Se pusermos de lado o paradoxo e a singularidade, perceberemos que se a adversidade é um mal, há um outro mal ainda pior. A mente humana não consegue desenvolver-se se não receber idéias. E crescerá mais em meio a desgraça do que no embotamento. Muitas vezes descobriremos que o homem que foi tratado com rigor terá se tornado mais sábio ao fim da sua vida do que aquele tratado com desdém. Mas o fato de que o rigor seja um dos meios para estimular o pensamento não significa que possa ser o melhor deles.
Já foi demonstrado que a coação, em termos absolutos, é injustiça. Poderá a injustiça ser a melhor maneira de difundir os princípios da equidade e da justiça? A tirania é a mais funesta de todas as coisas. Pois o que é a tirania , senão aquilo que habituou a humanidade a tanta ignorância e tanto mal por tantos milhares de anos? Mas será possível que essa mesma tirania, que tão terríveis consequencias teve, poderia, em outras circunstâncias, ser uma fonte de benesses? Qualquer tipo de coação exacerba a mente. Aquele que sofre a coação é persuadido, na prática, da necessidade de uma filantropia suficientemente ampla entre aqueles com os quais se relaciona. Ele aprende que a justiça só trunfa com grandes limitações e que ninguém deve esperar ser tratado com justiça. A lição que aprende é esta: "Submeta-se à força, renuncie a razão. Não se deixe guiar pelas suas convicções mas pelos aspectos mais vis da sua natureza - o medo da dor e um respeitoso temor pela injustiça praticada por outros. Foi assim que Elisabeth da Inglaterra e Frederico da Prússia foram educados na escola da adversidade. Mas o benefício que obtiveram com esse tipo de educação foi que com ela aprenderam a encontrar, dentro de si próprios, os recursos que lhes permitiram aceitar com espírito indômito a violência utilizada contra eles. Será esta a melhor maneira de formar o homem para a prática do bem? Em caso positivo, talvez se torne necessário, além disso, que a coação que usemos seja de uma injustiça flagrante, já que o progresso parece estar não na submissão, mas na resistência. Mas não há dúvida de que a verdade é a forma adequada de estimular a mente, sem que seja precisorecorrer à adversidade, por verdade entendemos aqui uma visão justa de todos os atrativos do trabalho, do conhecimento e da bondade. S e eu sou capaz de reconhecer o valor de qualquer ocupação, po que não deverei entregar-me a ela? Ese sou capaz de entendê-la com toda a clareza, por que não haverei de empenhar-me com zelo e didicação? Se souber como despertar a minha mente, apelando para os sentimentos mais nobres e verdadeiros da minha natureza. Mas, para que isso aconteça, é necessárioque você mesmo entenda, em profundidade, aquilo que quer merecomendar: é preciso que seu cérebro tenha absorvido todos os dados e que você possa expressar com clareza e total convicção suas próprias opiniões. Se estivéssemos acostumados a uma educação em que a verdade não fosse jamais desprezada por preguiça, ou expressa de forma traiçoeira, capaz de diminuir seus méritos; uma educação na qual o professor se sujeitasse à eterna procura da melhor forma para transmiti-la com objetividade e vigor mas sem qualquer preconceito ou aspreza; é impossível deixar de acreditar que esta educação seria mais eficaz para o desenvolvimento da mente do que qualquer outra forma de coação, fosse ela agressiva ou benevolente, que jamais tenha sido inventada.
O último objetívo a que se propõem o castigo é o exemplo. Tivessem os legisladores limitado suas opiniões à reforma e prevenção, este afã de usar o poder de que dispõem, embora equivocado, ainda teria a marca da humanidade. Mas a partir do momento em que a vingançaé apresentada como um estímulo para a ação, ou como medonha forma de exemplo, nenhuma barbárie foi considerada demasiado grande. E um egenho cruel ocupou-se em descobrir novas maneiras de torturar a vítima ou de tornar o espetáculo mais impressionante e horrível.
Há muito se observou que essa orientação raramente atinge os seus objetivos. Enquanto novas, todas as formas mais refinadas da crueldade produzem uma certa impressão que logo desaparece - e todo o alcance dessa invenção tenebrosa se esgota em vão. A razão disso é que, seja qual for a força com que a novidade atingiu a imaginação, a natureza inerente à situação logo reaparece e faz valer o seu poder supremo.
Sentimos então necessidades prementes da conjuntura a que estamos sujeitos e sentimos - ou pensamos sentir - os ditames da razão instigando-nos a satifazê-las.
Sejam quais forem as idéias que tivermos sobre as determinações da lei, elas surgem com sinceridade, embora talvez com alguns erros, das condições básicas da nossa vida. Comparamo-las com o depotismo que a socedade exerce como entidade coletiva e quanto mais fizermos, maiores serão nossos murmúrios e a nossa indignação contra as injustiças que sofremos. Mas a indignação não é um sentimento que sirva para conciliar; a crueldade não possui qualquer das qualidades da persuasão. Ela pode inspirar terror mas é incapaz de produzir em nós candura e docilidade.
Assim feridos pela injustiça, nossos sofrimentos, nossas tentações e toda a eloquencia dos nossos sentimentos manifestam-se repetidas vezes. É por acaso admirar que acabem triunfando?
O castigo utilizado como exemplo está sujeito a todas as objeções já utilizadas contra o castigo como forma de previnir ou regenerar e a outras mais que lhe são peculiares. Pois, no caso, o castigo é utilizado contra uma pessoa que no momento não está cometendo nenhuma ofensa e da qual podemos apenas suspeitar que alguma vez chegará a fazê-lo. Não admite discussão e exige de nós que consideremos este tipo de conduta como um dever, apenas porque isso é apraz aos nossos superiores e porque eles esperam que, através do exemplo, poderão fazer com que não nos obstinemos a pensar de qualquer outra maneira. Além disso, devemos lembrar que, quando me fazem sofrer um castigo - seja ele justo ou injusto - apenas para que eu sirva de exemplo a outras pessoas, estou sendo tratado com arrogante desdém, como se eu fosse incapaz de qualquer sentimento. Se quem me castiga está sendo justo, seria necessário que houvesse em mim alguma coisa que me tornasse merecedor deste castigo
-seja um deserto absoluto, o que seria absurdo, seja algum mal que eu pudesse praticar ou, finalmente, que existisse, no castigo que me infligem, alguma coisa capaz de provocar a minha regeneração.
Se qualquer uma delas for a razão que torna justo o sofrimento que me está sendo infligido, então não há nada que justifique a utilização do castigo como exemplo: ele pode ser uma consequencia incidental do processo mas não é parte integrante do princípio. Fazer com que um indivíduo seja objeto de tortura ou morte, sem outra razão senão a de fazer com que aqueles que assistem possam aprender alguma coisa com seu sofrimento é, sem dúvida, uma forma extremamente superficial e injusta de guiar os sentimentos da humanidade.

(William Dodwin - investigação sobre a justiça política, 1793: texto retirado do livro os grandes escritos anarquistas)

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