terça-feira, 21 de julho de 2009

Dos objetos e das fontes do historiador



Dos objetos e das fontes do historiador

Por Augusto Patrini Menna Barreto Gomes

O que realmente caracteriza o trabalho histórico? Seus objetos e fontes? Atualmente, certamente não. Será então o historiador o profissional ou o intelectual que estuda o passado? Mas o passado existe? Ora, hoje todos sabem que o tempo é relativo. Então o que realmente nos caracteriza? O fato de como narramos o que é considerado histórico? Ou o método empregado para elaborar essa narrativa? Provavelmente trata-se disto quando falamos de História (forma de conhecimento humano).

O passado, claro, é diferente do próprio discurso histórico. Há, assim uma diferença mais ou menos entre a história humana, a memória e seu produto pensado; a historiografia. Além disso, cabe dizer que também há uma substancial diferença entre História e memória (sejam elas de uma pessoa, de um povo ou de uma cultura). Entretanto, essas são categorias de pensamento não tão simples quanto gostaríamos didaticamente de apresentá-las.

Ora, seguindo essa reflexão perguntamo-nos: O que será então um objeto histórico? Considera- se que quase tudo está sob o efeito do tempo - idéia abstrata e complicadíssima estudada muito bem pelos físicos -, objetos, vestígios, mentalidades, estruturas de sentimentos, mitos, identidades e simbologias – tudo pode ser “objeto” de estudo de um historiador. Tudo é vestígio de um tempo passado. A questão, entretanto sempre será como captar essa impressão ou marca de um tempo hipoteticamente determinado? A fonte da história é tão plural, quanto às categorias temporais até hoje explicáveis ao entendimento humano, mas não se pode deixar de assinalar que há certamente algo que diferencia a análise histórica de outras formas de conhecimento humano que guardam algum parentesco (sociologia, filosofia, psicanálise, antropologia etc), mesmo quando relativas ao passado. Não se trata, pois do objeto oaquilo que caracteriza a especificidade do pensamento histórico, mas de sua forma, e estrutura formal (comumente aceita) que são caracterizadores desse tipo de pensamento. Não se trata apenas de um discurso que trate do passado, mas de um discurso que aborde o passado referenciado em algo geralmente considerado como verdadeiro ou ainda indiciário.

Nesse sentido, algo líquido e fugaz como a memória ou as “estruturas de pensamento” , literatura, arte, poesia podem ser consideradas fontes do discurso histórico, mas não são historiografias prontas em si., necessitam da análise e da reflexão específica do historiador.

Cabe, ainda fazermo-nos uma pergunta singular – feita no começo do século XX por Oswald Spengler, não somente para quê existe a história, mas para quem? Essa pergunta parece-me ainda sem resposta, entretanto fazê-la será sempre mais importante do que responde-la. Quando perguntamo-nos quais são os objetos da história, talvez também, mais importante que a resposta seja a pergunta que nos permite pensar como fazer história sem que ela não se limite aos planos simbólico ou ao natural, mas que possa ser mais ampla e global - sem no entanto ser imperialista.

Finalmente para pensar a diferença entre memória e discurso histórico, talvez seja mais interessante propor uma reflexão baseado em um curta-metragem animado, do que empreender um exaustiva busca teórica. Trata-se de “La Maison em petits cubes” (Tusimuki no ie) de Kumio Kato: http://www.vimeo.com/3987204 - ganhador do prêmio Cristal do Festival Internacional de Animação de Annecy em 2008 e do Oscar de melhor curta metragem animado em 2009. Ele propõe uma interessante reflexão sobre história, memória e resgate do tempo passado. Podemos por meio deste filme pensar várias categorias presentes no discurso histórico, e, ainda, sua forma e apresentação apresenta-nos uma aproximação interessante entre a historiografia a memória e a psicanálise.


Resposta STF

Protocolo de nº 19416
Ao Senhor


AUGUSTO PATRINI MENNA BARRETO GOMES


Prezado(a) Senhor(a),

Confirmamos o recebimento da sua mensagem e permitimo-nos trazer a Vossa Senhoria alguns esclarecimentos a respeito das ações em tramitação neste Tribunal que versam sobre este tema: Em 02 de julho de 2009, a Procuradoria-Geral da República - PGR, ajuizou, no S upremo Tribunal Federal - STF, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 178. A ação pretende que esta Suprema Corte declare obrigatório o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher. Pretende, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis sejam estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Segundo a PGR, a ausência de regulamentação legal relativa a esse tema compromete a possibilidade de exercício de direitos fundamentais por pessoas homossexuais. Em 09 de julho de 2009, Sua Excelência o Senhor Ministro Gilmar Mendes, Presidente do STF, proferiu despacho no qual determinou à PGR que especificasse e delimitasse os argumentos da ADPF 178 no prazo de 10 (dez) dias. Além disso, o Senhor Ministro Presidente observou que este não era o caso de uma decisão urgente por parte da P residência deste Tribunal no período de recesso. Acrescentou, também, que o tema já está em debate na ADPF 132, Relator Sua Excelência o Senhor Ministro Carlos Britto, na qual a PGR já manifestou parecer favorável à procedência da ação.

A Central do Cidadão agradece o seu contato, em nome de Sua Excelência o Senhor Ministro Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal. Atenciosamente,


stf
Supremo Tribunal Federal
Central do Cidadão
Edificio Sede - sala 309 - Brasilia (DF) - 70175-900

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Carta para revista Fórum


Olá.

Absolutamente fundamental a entrevista de Sergio Amadeu – que outras vozes contra o AI5 digital do Senadordo PSDB Azeredo sejam também ouvidas. Também gostei muito, como sempre, da coluna do Idelber Avelar, eu, desde que se começou a falar em reforma política defendi o unicameralismo, mesmosendo pouco compreendido por vários amigos e companheiros de esquerda. Em minha posição uma reforma visando um parlamento unicameral seria uma das soluções para o conservadorismo político e econômico em que se encontram as instituições políticas brasileiras. Ao leitor David Rodrigues da Silva, que lembrou na última edição, do apoio do presidente Lula a causa gay lembro que de nadaadianta esse apoio se nada de fato for feito. O presidente da África do Sul, Nelson Mandela, por exemplo, nunca falou diretamente da questão, mas aprovou uma das Constituições das mais modernas com relação ao tema – uma das únicas que reconheceos direitos ao casamento, a adoção, estabelece a homofobia como crime, entreoutros importantes direitos humanos e sociais – que são atualmente ainda negados aos brasileiros Lgbts (ainda cidadãos de segunda classe no Brasil). E isso em um continenteinfelizmente celebre pela homofobia e pelo machismo. Ser de esquerda e petistanão impede que sejamos críticos ao pouco feito pelo governo Lula na área.

Agora achei absolutamentechocante e horripilante a entrevista de Wladimir Palmeira, sobretudo depois demais um massacre cometido pelo regime autoritário chinês – desat vez contra os Uigures.O discurso de Palmeira parece desconhecer completamente o que são DireitosHumanos, e tenta justificar atos de barbárie com um maquiavelismo inconcebívelem uma pessoa de esquerda. Razão de Estado levada ás últimas conseqüências. Ok, se o governo chinês é modelo para alguém ergamos logo uma enorme estatua debronze de Stalin. Sinceramente, como socialista fiquei envergonhado ao ler aentrevista. Alguém precisa avisar ao senhor V.P. que pessoas não são ovos nem omeletes. Vale aqui indicar para que leia o capítulo chinês sobre DireitosHumanos da Anistia Internacional

Abraços do leitor assíduo.


Augusto
Historiador, tradutor e jornalista


PS:

O Centro de Apoio ao Migrante está procurando voluntários para atender agrande demanda que deve surgir depois da assinatura da lei de anistia aosimigrantes em situação ilegal. Segue abaixo, para conhecimento, umamensagem com mais detalhes.

----- Original Message -----
From: Paulo Illes
To:niem_rj@yahoogrupos.com.br
Sent: Wednesday, July 08, 2009 8:59 PM
Subject: Voluntariado no Centro de Apoio ao Migrante (São Paulo,Brasil)

Estimados amigos e amigas do Centro de Apoio ao Migrante,

No dia 02 de julho, quinta feira passada o Presidente da República doBrasil, assinou em Brasilia a lei de anistia para os imigrantes emsituação irregular no país até 01 de fevereiro de 2009. Com essa leimilhares de pessoas serão beneficiados. No Centro de Apoio ao Migrantefaremos plantões para orientar e dar esclarecimentos aos imigrantes,principalmente às pessoas mais humildes sobre o passo a passo para seater ao beneficio. A estimativa é de que passe pela instituiçãoaproximadamente 10 mil imigrantes nos proximos 180 dias. Para atendertodo esse pessoal com dignidade e sem muita pressa precisamos devoluntários e voluntárias que queiram se aderir a um grande mutirão pelacidadania dos imigrantes. Nesse sentido encaminho anexo uma ficha decadastro a ser preenchida e encaminhada para a instituição indicando osdias e horários de trabalho. Uma vez definidos o grupo que irá apoiarcomo voluntários convocaremso para uma capacitação onde infromaremos comoproceder em cada caso. É muito importante que as pessoas interessadasconheçam um pouco do espanhol e para os de lingua espanhola que escrevambem o portugues.

Um grande abraço,

Paulo Illes
Coordenador - Centro de Apoi ao Migrante
Serviço Pastoral dos Migrantes - CNBB
www.cami-spm.org

PS2:

CHINA: O relatório do governo para o Conselho de Direitos Humanos omite abusos

O relatório omite referências à crise em curso no Tibete, à severa repressão aos uigures na Região Autônoma Uigur de Sin-Kiang, e à perseguição aos praticantes de diversas religiões

O relatório do governo chinês para o Exame Periódico Universal (EPU) da ONU omite abusos graves contra os direitos humanos que são cometidos em todo o país, afirma Amnesty International. O informe paralelo desta organização de direitos humanos destaca várias questões que deveriam ser levadas ao Conselho quando da realização do EPU da China, em 9 de fevereiro.

Seis meses depois do encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim, o EPU oferece uma oportunidade excepcional para que a comunidade internacional mantenha relações sistemáticas de trabalho com a China sobre os motivos de preocupação em matéria de direitos humanos.

“É sempre bom ver a China se engajar, com os demais países do mundo, nas questões sobre direitos humanos. O ponto, agora, é como repercutirá esta relação na vida dos cidadãos chineses, sobretudo para aqueles que sofrem perseguição pelo exercício pacífico de seus direitos” declarou Roseann Rife, diretora do Programa para Ásia e Oceania da Amnesty International.

A Amnesty International reconhece que a China mantém uma relação de trabalho positiva com o Exame Periódico Universal da ONU, que inclui a apresentação pontual de seu relatório. A organização também reconhece os avanços realizados pela China em algumas áreas dos direitos humanos, como nas relativas ao seu sistema judicial, programas de educação em direitos humanos e a aprovação da Lei de Contratação, entre outros.

Contudo, o relatório do governo chinês omite as referências à crise em curso no Tibete, a severa repressão aos uigures na Região Autônoma Uigur de Sin-Kiang, e a perseguição aos praticantes de diversas religiões, como os membros de Falun Gong.

Segundo o diário oficial de Lhasa, Lhasa Evening News, em 18 de janeiro foi iniciada a Campanha de Controle Unificada de Mão de Ferro na cidade, capital do Tibete, que inclui “registros de investigação” em áreas residenciais, alojamentos, hotéis, hospedarias, cybercafés e bares. Em 24 de janeiro, a polícia deteve 81 suspeitos, dois deles por “opiniões reacionárias e por gravar canções reacionárias em seus aparelhos celulares”.

“O relatório da China omite algumas questões urgentes no país. Ignorar as violações graves de direitos humanos que são cometidas no país prejudica os objetivos e o espírito do processo de Exames Periódicos Universais da ONU” afirma Roseann Rife.

Segundo Amnesty International, o relatório oficial tampouco menciona os sistemas de detenção administrativa da China, nos quais centenas de pessoas podem estar privadas de liberdade sem julgamento e sem acesso a um advogado; nem a necessidade de reformar o sistema de registro de residências, que institucionaliza uma cidadania de segunda classe para milhões de trabalhadores rurais que moram nas cidades.

A Amnesty International expressa, também, sua frustração pela China não ter mantido uma relação de trabalho mais aberta com a sociedade civil na preparação de seu relatório.

“Um dos aspectos positivos deste processo é fazer com que os governos mantenham uma relação de trabalho séria com as organizações não governamentais (ONGs) e com ativistas do país na preparação dos relatórios que apresentam a ONU. Ao não atuar dessa maneira, a China perde uma importante oportunidade de abordar os graves desafios do país em matéria de direitos humanos” acrescentou Roseann Rife.

A Amnesty International insta as autoridades chinesas a promoverem ativamente a difusão de seu relatório na sociedade civil, bem como a divulgarem os informes paralelos apresentados por diferentes ONGs e a informarem seus cidadãos transmitindo os procedimentos de 9 de fevereiro.

“Para que o EPU seja um mecanismo eficaz, é preciso que as autoridades chinesas adotem medidas concretas para melhorar a situação dos direitos humanos no país. Observaremos de perto os procedimentos, inclusive a argumentação da China durante os debates e o que questionam ou deixem de indagar outros países” acrescentou Roseann Rife.

Durante a sessão do EPU da China, seus representantes apresentarão o relatório nacional e responderão às perguntas do Conselho. A sessão dedicada à China ocorrerá às 09h00 GMT de 9 de fevereiro. A ONU fará transmissão direta através do site http://www..un.org/webcast/unhrc/index.asp.

A versão integral do informe da Amnesty International perante a Comissão de Direitos Humanos da ONU (em inglês), está disponível para consulta em:
http://www.amnesty.org/en/library/info/ASA17/097/2008/en

/FIM

Amnesty International

Comunicado à Imprensa


sábado, 18 de julho de 2009

A fotografia como mídia do desaparecimento



Suprimimos o mundo verdadeiro – que mundo subsiste então?


O mundo das aparências? De modo algum.


Com o mundo verdadeiro suprimimos, ao mesmo tempo,


o mundo das aparências. (Nietzsche)





Mas o universo perdido das aparências nem por isso deixa lugar a um mundo objetivo. O mundo liberado da verdade e das aparências torna-se FÁBULA. É, pelo menos, a primeira hipótese, a hipótese poética. Mas falaremos disso mais tarde, com a transferência poética de situação. Falaremos em primeiro lugar da segunda hipótese, que é a de uma gigantesca contra-transferência, contra-transferência negativa, e que é simplesmente a da queda do mundo no real.



O mundo precipita-se na realidade por uma espécie de interpenetração mortal, cai na realidade como resíduo, do qual a arte doravante faz parte, e o mundo paga por isso. Segundo Nietzsche, uma vez perdido o mundo verdadeiro, ao mesmo tempo que o das aparências, o universo torna-se um universo de fato, positivo, tal qual, que nem mesmo tem mais a necessidade de ser verdadeiro. Tão fatual quando um ready-made. Por assim dizer, um mictório. O mictório de Duchamp é o emblema de nossa hiper-realidade moderna, resultado de uma contra-transferência violenta de toda a ilusão poética sobre a realidade pura, a do objeto transferido sobre si mesmo, suspendendo assim qualquer metáfora possível. Da mesma forma que Duchamp se descartou do mictório, suprimindo-lhe todo uso, toda referência e toda ilusão, também Deus se retirou do mundo, abandonando-o a seu destino de ready-made.



É a partir do momento em que Deus não quer nem vê-lo que o mundo se torna real, de uma tal realidade que ela não é suportável senão ao preço de uma denegação perpétua, do tipo: "Isso não é um mundo" (sendo o famoso "Isso não é um cachimbo", denegação surrealista da própria evidência, correlativo do mictório, Duchamp também poderia ter dito: "Isso não é um mictório"). Esse duplo movimento da evidência absoluta e definitiva do mundo e da denegação – igualmente tão radical – dessa evidência domina toda a trajetória da arte moderna; não somente da arte, mas de todas as nossas percepções profundas, de toda a nossa apreensão mental do mundo. E aqui não se trata mais de moral filosófica ou de nostalgia do gênero: "O mundo não é o que deveria ser", ou "Ele não é mais o que era". Não: o mundo é como é. Uma vez escamoteada toda transcendência, as coisas não são mais o que são e, tais como são, são insuportáveis. Elas perdem toda ilusão e tornam-se imediata e totalmente reais, sem sombra, sem comentário. Um gigantesco ready-made. E no mesmo gesto, simultaneamente, essa realidade intransponível não existe mais. Não tem mais lugar para existir, dado que ela não se troca mais contra absolutamente nada. "A realidade existe? Estamos em um mundo real?" – tal é o leit motif publicitário de todas as nossas superproduções cinematográficas. Mas isso traduz simplesmente o fato de que não podemos suportar o mundo como uma presa da realidade, senão sob o signo do princípio do mal, isto é, sob a forma de uma denegação radical, qualquer que seja ela. E isso é lógico: não podendo mais o mundo ser justificado em outro mundo, é preciso, desde já, hic et nunc, dar-lhe força de realidade, purgá-lo de toda ilusão – dentre as quais a da arte, bem entendido, que não tem mais razão de ser. Mas, ao mesmo tempo, pelo próprio efeito dessa contra-transferência negativa, aumenta a denegação do real como tal.



Mesmo os aspectos mais sórdidos do mundo – os dejetos – tornam-se positivos, imanentes em sua dejeção, objetos em si, particularmente na arte atual, onde alimentam a maior parte das performances e das instalações. A modernidade está dominada pelo apagamento da ordem natural, é uma eliminação experimentalmente necessária, e a arte participa disso – toda a arte contemporânea participa inteiramente, à sua maneira, ilustrando como dejeto, como dejeção, todos os resíduos de uma ordem natural: o corpo, o rosto, as formas, as cores – tratando a si mesma como dejeto e celebrando-se como função inútil.



A partir do século XIX, a arte se quer inútil. Ela faz disso um título de glória (o que não é de forma alguma o caso na arte clássica na qual, em um mundo que não é ainda nem real, nem objetivo, a questão da utilidade ou da inutilidade nem mesmo se coloca). É portanto lógico que exista uma predileção pelo dejeto, que por definição também é inútil. Basta levar qualquer objeto à inutilidade para fazer dele uma obra. É precisamente isso o que faz o ready-made, quando se contenta em desinvestir um objeto de sua função, sem nele nada mudar, para dele fazer um objeto de museu. Basta fazer do próprio real uma função inútil para dele fazer um objeto de arte, como uma presa da devoradora estética da banalidade. O mesmo ocorre com as coisas antigas, revolutas e portanto inúteis – elas adquirem automaticamente uma aura estética. Seu distanciamento no passado equivale ao gesto de Duchamp, e elas também se tornam ready-mades, vestígios nostálgicos empalhados tais quais.



Poderíamos extrapolar esse processo para a produção em seu conjunto, produção de coisas materiais ou imateriais. A partir do momento em que essa produção atinge um patamar crítico, no qual ela não se troca mais por nada em termos de riqueza ou de finalidade sociais, ela se torna um gigantesco objeto surrealista, apreendido por uma estética devoradora, e inscreve-se em toda parte em uma espécie de museu virtual. Museificação de todo o meio-ambiente técnico, tal como um ready-made.



Portanto, através do dejeto, da figuração abstrata do dejeto, da obsessão do dejeto, a arte se empenha em encenar e em materializar sua inutilidade. Ela manifesta seu não-valor de uso, seu não-valor de troca (ao mesmo tempo em que se vende muito caro). Mas a inutilidade não tem valor em si, é um sintoma secundário e, sacrificando suas apostas a essa qualidade negativa, a arte se engana em uma gratuidade inútil. É um pouco o mesmo cenário da inutilidade, de pretender ao não-senso, à insignificância, à banalidade, à minimalidade, ou até mesmo ao desaparecimento e à ausência – o que testemunha uma pretensão estética redobrada. A anti-arte, sob todas as suas formas, se esforça para escapar da figura, da representação, da dimensão estética. Mas esta é irremediável, a partir do momento em que, com o ready-made, anexou a própria banalidade, e que tudo, mesmo nossa vida cotidiana, tornou-se arte (é bem por isso que não há, propriamente falando, nem arte, nem vida cotidiana). Fim da inocência do não-senso, da não-verossimilhança, da não-perspectiva, da não-transcendência. Tudo isso, que desejaria ser ou voltar a ser a arte contemporânea, só faz reforçar o caráter abominavelmente estético dessa anti-arte. Voltar ao elemento puro do objeto, à condição radical de só ser "uma coisa dentre outras", voltar a ser uma coisa absolutamente qualquer, mas guardando seu privilégio e sua singularidade: eis o que está além das forças da arte como tal. Há acidentes irônicos que a isso nos conduzem (o visitante sacrílego que urina no mictório de Duchamp, os lixeiros de Beaubourg, a Cadeira de Kossuth). Mas mesmo isso não põe fim à série estética do não-senso.



A arte sempre se auto-negou. Mas ela o fazia por excesso, exaltando-se com o jogo de seu desaparecimento. Hoje em dia, ela se nega por ausência – pior: ela nega sua própria morte. Ela imerge na realidade, ao invés de ser o agente do assassinato simbólico desta, ao invés de ser o operador mágico de seu desaparecimento. E o paradoxo é que, quanto mais ela se aproxima dessa confusão fenomenal, dessa nulidade enquanto arte, mais ela é creditada e sobrevalorizada – de tal modo que, para retomar Canetti, estamos no ponto em que mais nada é belo nem feio. Ultrapassamos esse ponto sem sabê-lo e, por falta de encontrar esse ponto cego, não podemos senão perseverar na destruição atual da arte.



É no quadro dessa contra-transferência negativa, dessa imersão do mundo na realidade que aparece e cresce o objeto no horizonte da modernidade. O romance da modernidade, diferentemente da tragédia ou do drama clássico, é, a partir do século XIX, o surgimento do objeto, dos objetos em sua evidência nauseante, em sua banalidade viscosa, em sua tecnicidade hostil. Quando os objetos se levantam no horizonte da percepção e da consciência coletiva, é para assombrar-nos. "Na luz negra de seu pânico, os objetos, essas miragens de átomos com arestas cortantes, pareceram-lhe de um heroísmo irrisório com seu apego, sua donquixotesca fidelidade em relação às formas que só o acaso lhes havia atribuído... Eles tinham o ar de olhá-lo, como testemunhas conscientes de sua sorte infeliz. Então, como o homem primitivo, ela começava a personificar o universo..." (Saul Bellow). E, em geral, os objetos, como as forças da natureza, quando são personificados, nos desejam o mal. São os protagonistas da transparência do mal – mesmo se são os outros que, através dos objetos, nos desejam o mal; até invadir todo o Novo Romance com a descrição minuciosa de um meio-ambiente incompreensível – objetos acabados, de uma presença exata e de uma ausência indefinida – espelhos de absolutamente nada, exatamente como o ready-made, como os produtos acabados de uma função inútil (no esplendor de uma realidade inútil?).



A idéia revolucionária da arte contemporânea era a de que qualquer objeto, qualquer detalhe ou fragmento do mundo inanimado podia exercer a mesma atração estranha, e colocar as mesmas questões insolúveis que as reservadas antigamente a algumas raras formas aristocráticas chamadas obras de arte. A verdadeira democracia estava aí: não no acesso de todos ao gozo da arte, mas na chegada estética de um mundo-objeto onde, segundo a feliz fórmula de Warhol, cada objeto sem distinção teria seus quinze minutos de glória – e, precisamente, sobretudo os objetos sem distinção. Todos se equivalem, tudo é genial – ready-made universal, tendo como recíproca a transformação da arte e da própria obra em objeto – ready-made ela também, sem ilusão nem transcendência, acting-out puramente conceitual, gerador de objetos desconstruídos que nos desconstróem, por sua vez, segundo a norma fundamental analítica da modernidade. Pois a um olhar respondemos por um olhar, a uma visão respondemos pelo imaginário, mas a um objeto conceitual respondemos por uma atitude conceitual. Não há mais rosto, não há mais olhar, não há mais corpo – órgãos sem corpo, fluxos, moléculas de fractal. A relação com a "obra" é da ordem da contaminação, do contágio: conecta-se, absorve-se, imerge, exatamente como nos fluxos e nas redes. Encadeamento reflexo, encadeamento metonímico, reação em cadeia.



A bem da verdade, não há mais objeto em tudo isso: no ready-made, não é mais o objeto que está aí, mas a idéia do objeto, e não gozamos mais da arte, mas da idéia da arte. Estamos em plena ideologia. E no ready-made se resume, no fundo, a dupla maldição da arte moderna e contemporânea: a de uma imersão no real e na banalidade, e a de uma absorção conceitual na idéia da arte. Saul Bellow disse sobre Picasso: "Essa absurda escultura de Picasso, com seu caule e suas folhas metálicas – nem asa, nem vitória, um simples testemunho, um vestígio – a idéia, nada mais, de uma obra de arte. Muito semelhante às outras idéias e aos outros vestígios nos quais se inspira a nossa existência – não mais a maçã, mas a idéia, a reconstrução pelo especialista em maçãs daquilo que foi outrora a maçã – não mais o sorvete, mas a idéia, a lembrança de uma coisa deliciosa, feita de substitutos, de amido, de glucose, e outros produtos químicos – não mais sexo, mas a idéia, ou a evocação do sexo – o mesmo ocorrendo com o amor, a crença, o pensamento, e todo o resto..."



Por isso, em matéria de arte, a coisa mais interessante hoje em dia seria infiltrar-se no encéfalo esponjoso do consumidor moderno. Pois o mistério está lá, atualmente: no cérebro do receptor, no centro nevrálgico dessa servilidade diante das "obras de arte". Onde está o segredo? Nesse fato de que as mortificações que os "criadores" infligem aos objetos e ao seu corpo, os consumidores infligem a si próprios e às suas faculdades mentais, segundo uma cumplicidade em espelho. É o que eu chamava "complô da arte". É evidente que o nível de tolerância baixou consideravelmente, em função dessa cumplicidade geral. De fato, esse triunfo da idéia da arte sobre a própria arte e, com o ready-made, esse triunfo da idéia do objeto sobre o próprio objeto, não são senão diversos aspectos do gigantesco processo contra-transferencial que hoje toma toda sua dimensão sob a forma do retorno-imagem.



Contra-transferência que afeta muito geralmente o universo visual e midiático, mas também a vida política e intelectual, a vida cotidiana e individual, nossos gestos e nossos pensamentos, em toda parte afetados por essa refração automática de si mesmos, e que toca até nossa percepção do mundo mais ingênuo e mais natural. Por toda parte, o retorno-imagem, que de alguma forma sela toda coisa através de uma auto-implementação, por uma auto-simulação automática, é como o vírus de nossa (pós)modernidade.



O retorno-imagem curto-circuita o olhar, curto-circuita a representação, duplicando as coisas de antemão e interceptando seu desenrolar, recobrindo todas as coisas com o véu de sua encenação – fenômeno particularmente sensível no universo fotográfico, em que raros são os seres e as coisas que escapam desse retorno-imagem. Elas se revestem bizarramente de um contexto, de uma cultura, de um sentido, de uma idéia de si mesmas, elas se armam de uma contra-transferência que desarma toda visão e criam uma forma de cegueira, que Rafael Sanchez Ferlosio denuncia: "Existe uma forma terrível de cegueira da qual bem poucos se apercebem: a que permite olhar e ver, mas não permite ver de relance, sem olhar. É assim que eram as coisas antigamente: não se as olhava, contentava-se em vê-las. Hoje em dia, tudo é aprisionado pela duplicidade, nenhum impulso é puro e direto. É assim que o campo se tornou paisagem, isto é, representação de si mesma... Onde pouso o olhar, só vejo essa horrível encenação que os videntes glorificam sob o nome de "paisagem"."



Nesse sentido, nossa própria percepção, nossa sensibilidade imediata tornou-se estética. A vista, a audição, o tato, todos os nossos sentidos tornaram-se estéticos, no pior sentido do termo. E toda visão nova das coisas não pode resultar senão de uma desconstrução radical desse retorno-imagem, de uma resolução dessa contra-transferência que obtura a visão, devolvendo o mundo à sua ilusão radical (ligado ao fato de que o próprio mundo é sem retorno, sem imagem e sem retorno-imagem). É possível?



Mas não se deve confundir esse processo de reverberação, de confusão da própria imagem com o espelho da representação, no qual nos diferenciamos de nossa imagem invertida, e entramos com essa inversão em um processo aberto de alienação, de alteridade e de jogo com nossa própria imagem. O espelho, a imagem, o olhar, a cena, abrem precisamente sobre uma transferência, sobre toda uma cultura da metáfora inversa daquela do retorno-imagem e que contra-transfere.



Toda essa problemática do retorno-imagem, que intercepta o próprio acontecimento da imagem e do pensamento, parece-me estar inscrita em filigrana na análise da televisão. Digamos, para resumir, que é a televisão que nos olha, e que é por que nos olha que ela nos impede de ver. Ela nos olha a partir de um ponto cego, portanto, a partir de nada – é o nada que nos olha, e que faz com que nada lá dentro, em tudo o que a televisão nos dá a ver, nos diga mais respeito. Esse ponto cego – no duplo sentido de que não o vemos, ou ponto através do qual não vemos nada, e esse Nada não nos diz respeito – é o ponto de refração a partir do qual nos volta o retorno-imagem, a partir do qual nosso próprio olhar nos retorna como isso que nos impede de ver. Através da TV, mas também através de todas as mídias, as coisas nos olham cegamente, sem que possamos vê-las: aí encontramos a cegueira especificamente moderna de que nos fala Ferlosio.



Basta que uma coisa não esteja no olhar – ou melhor, que ela esteja nesse olhar cego da televisão, para que ela não nos diga mais respeito – e daí vêm a incerteza absoluta e a dissuasão que ela opera em todo pensamento e em toda ação – dissuasão fonte de poder, do único poder atual, que de fato não mais emana de uma delegação de soberania, mas dessa única contra-transferência negativa massiva, individual e coletiva, sobre nossa própria vida e nossas próprias ações, ou sobre o acontecimento do mundo. Ora, partimos, na Troca Impossível, do postulado segundo o qual a incerteza radical do pensamento vem do fato de que ela não se troca nem pela verdade, nem pela realidade. Mas ela também não é ligada a um retorno-imagem do pensamento sobre si mesmo. Isso é o vício, ou o vírus do pensamento crítico, do pensamento-verdade. Circularidade do pensamento filosófico que, na falta de poder trocar-se pelo que quer que seja, e no desespero dessa troca impossível, inventa literalmente a verdade para poder trocar-se por ela, para poder enfim trocar-se por qualquer coisa. A verdade é a invenção do pensamento crítico, e é sua moeda de troca – supor uma instância transcendental à qual o pensamento estaria predestinado e que lhe remeteria sua imagem. Assim edifica-se o pensamento-verdade, que supõe que o real é racional e, portanto, permutável pelo pensamento.



Para ir mais depressa e voltar à televisão e a todas as técnicas do visual e do virtual, diria que da mesma forma que o pensamento inventa para si a verdade de modo a poder se trocar por ela, nós nos inventamos a tele(verdade) para nos remetermos nossa imagem e criarmos um simulacro de troca com a realidade. Tudo o que vemos nas telas não é senão retorno-imagem que funda o efeito de realidade por um simulacro de troca. Podemos imaginar todas as conseqüências dessa circularidade viciosa – a mesma circularidade viciosa que aquela do pensamento e da verdade. O que impõe, evidentemente, a necessidade quebrar essa circularidade de uma forma ou de outra – isto é, pensar além da verdade e olhar além da TV.



Retorno do olhar contra o que nos é mostrado e contra aquilo que nos é escondido (pois isso mesmo que nos é escondido, o não-dito, é objeto de um retorno-imagem mais sutil – haveria muito o que dizer sobre isso quanto à psicanálise e ao conceito de inconsciente atuais). Possibilidade de inversão do olhar, de inversão do efeito de verdade, possibilidade para a imagem de desbaratar o retorno-imagem, possibilidade para o acontecimento de desbaratar a informação? Para isso, há uma única solução (é claro que não é uma solução "prática"): é preciso que o próprio mundo passe ao ato. Para quebrar o curto-circuito integrado da verdade e da realidade, para que seja o próprio pensamento que faça acontecimento. Assim como os povos condenados a quebrar o espelho onde estavam presos na verossimilhança, na obra de Borges, deveríamos destruir a tela, o véu da tela e da informação onde estamos emboscados por essa potência cega, essa quintessência virtual do mundo que nos remete a nós mesmos.



Vejo algum traço desse "acting"(out) na passagem ao ato fotográfico, ou na passagem ao ato contingencial (diferente da contingência histórica), ou na passagem ao ato de pensamento, na qual o objeto, o acontecimento, o mundo, lhe impõe sua incerteza, sua ininteligibilidade (e não aquela que nos é administrada por programação); o pensamento impõe sua ininteligibilidade. Encontramos, através da fotografia, a transferência poética de situação da qual falávamos no início. "A foto reproduz infinitamente o que só ocorre uma vez. Ela repete mecanicamente o que jamais poderá se repetir existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se lança na direção de uma outra coisa. Ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, a Tuchè, a Ocasião, o Encontro, o Real em sua expressão infatigável, em sua intratável realidade."



Mas não se trata, é claro, da generalidade da vida real. Não se trata, de modo algum, de exaltar o instante realista, a significação realista do instante (como na foto-reportagem, por exemplo). O instante é o que há de mais servil e de mais mentor, por que é carregado de sentido. É preciso, pelo contrário, reduzir o sentido, a significação-choque – aquela que, por sua violência e seu realismo, serve de afrodisíaco a serviço de um tráfico "pornográfico" da imagem. A fotografia é um dos afrodisíacos mais poderosos, e não há nenhuma contra-indicação em gozar da excitação artificial da foto. Simplesmente, é preciso ver que essa foto-reportagem transforma enfaticamente a realidade, ela a sobressignifica, ela unifica-a como sentido – e assim fazendo cria o choque, mas apagando justamente o punctum – não deixando lugar para nenhum detalhe que traia o conjunto (como o chiste – trait d’esprit – trai a linguagem e sua significação coerente). Ora, no detalhe e no fragmento é que se encontra o objeto próprio da foto, nisso que "aponta" para você e nisso que o choca. Por isso o isolamento, o vazio, o silêncio são constitutivos de sua qualidade singular. Essa brancura fotográfica – símbolo de um desejo petrificado.



Por isso a foto é pensativa. Há uma "pensatividade" do objeto, como a de alguém que nos olha sem nos ver. E há uma pensatividade do olhar fotográfico que não é justamente um ato de reflexão, mas um ato de pensamento sem pensamento, uma mirada sem alvo. Os primitivos (em foto) olham vocês sem vê-los: eles não determinam a posição do operador. E é essa separação, esse corte que assegura sua singularidade contra qualquer interação, contra o retorno-imagem. O objeto, como os primitivos, é sempre pensativo. E o olhar também se faz objeto, olhar-objeto pensativo e não reflexivo, nem ativo ou móbil, como no cinema – não há pensatividade no cinema.



"A essência da imagem é estar inteiramente fora, sem intimidade, e entretanto mais inacessível e misteriosa que o pensamento do foro interior... irrevelada e, apesar disso, manifesta" (Blanchot). Se a foto não pode ser aprofundada, é por sua força de evidência, pela força da aparência: não há intimidade, não há interioridade, não há foro interior, não há pathos. Não há fenomenologia: não há percepção reflexiva do mundo, nem da interação sujeito/objeto. É o próprio objeto que é coisa mental – não fenomenal, mas mental, e é isso que lhe dá essa qualidade pensativa, a qualidade de algo que nos pensa, isto é, através da qual aparecemos em filigrana, no próprio momento do desaparecimento. Pensar, com efeito, não é refletir, é a arte de fazer transparecer, e de fazer desaparecer. Assim, a poltrona é pensativa: nela opera o desaparecimento, a forma virtual do ser humano que não está presente, que não está mais presente, mas cuja forma aí está, como uma espécie de sorriso. Mas também o carro imerso, ou a mesa de café, ou o escritório vermelho com a luz e o manuscrito, são pensativos – mesmo as carcassas de carne são pensativas – apreendidas no momento em que portam o traço de uma forma desvanecida (portanto, jamais uma imagem realista bruta de libertação, mas também jamais um espelho). Pensamento sem reflexão, sem retorno-imagem – ao contrário dos sujeitos humanos, nos quais o retorno-imagem é praticamente inevitável.



Mas penso em outras fotos que não as minhas. Nas de Anna Mariani, por exemplo, uma fotógrafa brasileira que foi ao nordeste fotografar as casas dos camponeses – somente as fachadas, muito coloridas, de linhas muito simples e geométricas. Objetos puros, nascidos simultaneamente da expressão gráfica e luminosa espontânea dos camponeses do nordeste, e de seu desnudamento e de sua miséria. Anna Mariani os restituiu da mesma forma totalmente nua, frontalmente, sem sequer a presença de uma pessoa viva. Mas os camponeses estão aí. Estão presentes por trás dessas fachadas, como por trás de máscaras. Cada fachada é como uma máscara ou um rosto, o grafismo é o dos traços de um rosto, e as aberturas são como os orifícios de uma máscara. A ausência dos homens não é senão a ausência ingênua de seus corpos em proveito da máscara viva de sua condição. Eles deram às suas fachadas as linhas de suas sobrevidas, reduzidas, elas também, à sua mais simples expressão. E Anna Mariani restituiu fielmente esse gesto, respeitando ao mesmo tempo em sua tomada de vista, sem efeitos especiais, o brilho das cores e a simplicidade abstrata do traço decorativo. Ela integrou em sua foto a inspiração cênica primitiva dos camponeses, segundo uma mesma regra rigorosa: desnudamento físico da miséria, desnudamento físico de sua expressão, desnudamento fotográfico de sua reprodução.



Ela nos propõe, com isso, algo que rivaliza com os produtos habituais da antropologia, mas que os ultrapassa, por que ela se absorve em seu objeto, ressuscita-o não em sua presença redutora, mas na sua ausência irredutível. Algo que, sem se forçar, ao mesmo tempo rivaliza com os produtos de nossa estética e os ultrapassa, pois, apesar de muito belas, essas fotos não são justamente produtos estéticos, por que guardaram essa objetalidade, essa fatalidade dos objetos "primitivos", essa necessidade absoluta que os objetos de arte perderam há muito tempo.



Esse jogo da ausência e da transparência é, portanto, a regra secreta da imagem. É pela forma, e no coração da forma, que se opera essa anamorfose, esse desvanecimento do objeto, do conteúdo, do sentido. Em princípio, o operador nada tem com isso. E o sonho seria que essas imagens se fizessem sozinhas, segundo uma maquinalidade à Warhol – a maquinalidade do próprio sonho (cf. o lamento, nos próprios sonhos, por um reflexo de fotógrafo diante da beleza de certas imagens, de ter esquecido sua máquina fotográfica!). De todo modo, o operador busca desaparecer ao mesmo tempo em que faz desvanecer seu objeto. E isso faz parte da ilusão mágica da foto. A esse respeito me vem ao espírito uma espécie de alegoria: vocês repararam que Deus está ausente de todas as fotos? E por que Ele está ausente? Porque é Ele o fotógrafo. Assim, conseguiria desvanecer-se e deixar o mundo existir, sem Ele, como uma fábula poética.



Peço desculpas por abusar assim do nome de Deus, mas é a alegoria mais pertinente e a menos comprometedora disso que eu queria dizer com o desaparecimento do sujeito fotográfico.



Assim, nos vemos às voltas com uma espécie de metamorfose, ou melhor, de anamorfose do pensamento na imagem, por onde ela escapa a todos os tipos de discurso e toca o reino da Fábula de que eu falava no início. Isso quer dizer: a algo que não é nem verdadeiro nem real, algo que se conta literalmente, que não existe a não ser por sua narrativa, sua fala, seu mito literal – e, para mim, a imagem fotográfica, em sua forma mais pura, é uma das variantes da fábula. Uma maneira, no sentido forte, de salvar as aparências, isto é, através da imagem como fábula, através da imagem-foto como instante fabuloso, de deixar entrever que esse mundo "real" corre o risco, a todo instante, de perder seu sentido e sua realidade – de que ele poderia, no fundo, abrir mão do sentido e da realidade, algo que porém não suportamos (não mais do que a idéia de que nada haja, antes do que algo), senão graças a essas imagens, essas poucas fábulas que se deixam atravessar pelo vazio, que são o (não) lugar vivo da desintegração dos conceitos, e que se apoderam das próprias funções do pensamento como se fora de uma última servidão. Mas que retraçam esse fim, que se exaltam com esse desaparecimento, como o mito exalta e retraça as origens e o assassinato original da realidade.



Jean Baudrillard


Tradução: Nícia Adan Bonatti


Revisão: Paulo Oliveira





Jean Baudrillard





Professor de Sociologia e Cultura Pós-Moderna na Universidade de Paris

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A literatura corrosiva de Chuck Palahniuk




Alessandro Garcia

Qualquer menção inicial a Chuck Palahniuk necessária e primeiramente estará acompanhada de informações a respeito de "Clube da Luta". Seu primeiro livro, que foi adaptado para o cinema pelo diretor David Fincher, (reunindo os astros Brad Pitt e Eduardo Norton), se transformou em uma obra de culto de tamanhas proporções que várias das idéias do autor contidas no livro se desatrelaram de sua importância ou significados somente literários e passaram a ser percebidos como princípios de vida, ideais a serem seguidos. Um fenômeno cultural que no Brasil encontrou sua vazão violenta no episódio do estudante de medicina que entrou no cinema durante uma sessão do filme e atirou contra várias pessoas e, segundo ele, motivado pelos ideais do filme. Uma rápida "googleada" e se percebe que, mais do que debater os valores literários da obra, existem centenas de sites dispostos a encontrar sentido e referência nos "mandamentos" de princípios do que chamam de Evangelho de Tyler Durden, o personagem anti-capitalista que no cinema foi representado por Brad Pitt.

Certo é que não se pode reduzir esta obra de Palahniuk, tão somente, a um livro de idéias violentas. Não obstante sua trama - Jack, um investigador em uma companhia de seguros que, não agüentando mais sua rotina comezinha sem significados e emoções e conhecendo Tyler, um maluco que gosta de resolver tudo na base da porrada, fundam o tal Clube da Luta, um local onde homens brigam entre si para extravasar toda a fúria que suas vidas rotineiras lhes causam. Mas a coisa começa a sair do controle, e o que era pra ser apenas uma seção de "psicanálise dolorida" passa a se transformar numa organização terrorista, que insiste em acabar (no sentido mais geral dessa palavra) com tudo o que é relacionado ao capitalismo e ao consumismo – existe muito mais por trás desta superfície. Estão ali embutidos os ideais e discursos anticapitalistas e anticonsumistas que passarão a se propagar em diversas obras de Chuck Palahniuk. Estão ali as tentativas de insurgência contra um sistema que insiste em rotular, em demonstrar que a receita do sucesso é composta por dinheiro, demonstração de poder e ostentação. "Clube da Luta" é só o primeiro round para se compreender que a literatura, para Palahniuk é composta de princípios – muitas vezes acusados de subversivos – que se estenderão por outras obras suas, ainda que travestidas, por vezes, de tramas que não revelam isto tão claramente.

Chuck Palahniuk teve, assim como as tramas de seus livros, uma vida insólita. Jornalista de profissão, Palahniuk já foi artista de rap, lutador amador e até mecânico de automóveis. Teve o pai assassinado com a namorada pelo ex-marido dela. O acusado está no corredor da morte. Quando era adolescente, seu avô cometeu suicídio após matar a mulher. O autor adora conversar sobre sua quase obsessão em fazer humor com episódios trágicos, sobre as referências anticonsumo presentes em suas histórias, sobre sua escrita enxuta e direta, e suas narrativas repletas de escatologia. Um exemplo notório disto é um conto do autor chamado "Guts" (vísceras), presente no livro "Haunted", de 2005 e que foi publicado em março de 2004 na revista Playboy americana. No conto, com sua peculiar descrição direta e irônica, o autor narra episódios – verídicos, segundo ele – de obsessão masturbatória de três adolescentes dispostos a ir cada vez mais fundo para ampliar o seu espectro de prazer nesta prática. De inserção de cenouras no ânus até filetes de cera endurecida no orifício peniano, as taras realmente caminham para o extremo, passando por masturbação com asfixia e culminando para o jovem que se masturba dentro da piscina, sentado sobre o duto de sucção a lhe aspirar o ânus. Sem calcular o potencial de que é capaz tal duto, ficamos finalmente sabendo o porquê do "guts" do título. Em 2003, durante sua turnê para promover o romance "Diary", o autor leu o conto para diversas platéias nos Estados Unidos. Mais de 75 desmaiaram ao ouvir a leitura. Confesso que quando o li não cheguei a tanto, mas é totalmente compreensível o motivo de tal fato. Quem quiser tirar a prova, pode conferir a tradução do conto Guts.

Depois de "Clube da Luta", que é de 1996, o autor lançou "Survivor", em 1999, que aqui no Brasil recebeu o nome de "Sobrevivente", lançado pela editora Nova Alexandria. "Sobrevivente" compartilha com "Clube da Luta" o asco pelo cotidiano capitalista e a estrutura narrativa, começando quase do fim e narrando em primeira pessoa a história em flashbacks. Ao contar a história de Tender Brenson, último fiel da seita Igreja do Credo, um fanático religioso que sequestra um avião em pleno voo para cometer suicídio, relatando os eventos da sua vida na caixa preta do avião, Palahniuk critica, através de uma narrativa ágil, o sistema educacional americano, que forma pessoas programadas apenas para serem "funcionários perfeitos". O personagem conta em prosa rápida e cortante sua vida, do momento em que saiu da comunidade para trabalhar em casas de família - nas horas vagas aliciando moças e dando conselhos errados a pessoas deprimidas pelo telefone. Até que se torna uma celebridade instantânea, começa a namorar e tudo dá errado. O livro não se deixa largar até o último capítulo e mistura suspense à comédia grotesca para satirizar de forma mordaz a vazia e consumista cultura americana. Quase um estudo antropológico em forma de romance satírico, traz uma visão ácida da vida em sociedade e de como o indivíduo pode ser moldado - seja pela igreja através da culpa e êxtase religioso; pela academia de ginástica através de exercícios; pelo Espetáculo da ânsia por riqueza e fama. Apesar de já ter tido seus direitos comprados pelos produtores de cinema, sua realização se torna complicada pela hesitação dos mesmos em produzir um filme cujo protagonista seqüestra um avião.

Em "Invisible Monsters", de 1999, sem tradução no Brasil, Palahniuk narra a história de Shannon McFarland, uma supermodelo que tinha tudo: uma brilhante carreira, um namorado e um melhor amigo muito leal. Quando sofre um acidente (na verdade, um evento ambíguo sobre o qual não se pode ter certeza absoluta de se tratar de acidente), tem o rosto desfigurado, acabando com sua carreira e perdendo também seu namorado. Sua vida está arruinada quando conhece Brandy Alexander, um transsexual que vê alguma esperança nela. Juntos, os dois começam um plano de vingança contra aqueles que são suspeitos de envolvimento no acidente de Shannon, enquanto viajam pelos Estados Unidos roubando drogas em casas de repouso. Shannon abriga um ressentimento profundo em relação ao seu irmão, que morreu supostmente de AIDS. Porém, enquanto a novela progride, se revela que tudo está conectado em maneiras inesperadas. Este, que era para ser o romance de estréia de Palahniuk, foi constantemente rejeitado pela editoras por ser considerado "doentio" em excesso, e só foi publicado depois do sucesso alcançado pelo autor depois que Palahniuk estreou na literatura com "Clube da Luta".

2001 é o ano de "Choke", publicado pela Rocco no Brasil como "No Sufoco", onde um menino traumatizado por uma infância atribulada ao lado da mãe amalucada se transforma no adulto golpista Victor Mancini. Victor, um ex-estudante de Medicina que freqüenta grupos sexólatras anônimos sem a menor intenção de curar qualquer compulsão, mas sim de conseguir mais parceiras sexuais, aplica diariamente o mesmo golpe: finge engasgar-se ao comer e estar prestes a sufocar. Comove quem o socorre, contando que passa por dificuldades financeiras, o que, invariavelmente, leva seus salvadores a lhe enviarem dinheiro.

O dinheiro que obtém dos golpes nos bons samaritanos que o acodem serve para pagar o tratamento da mãe, internada em um sanatório com Mal de Alzheimer. Um anti-herói detestável, Victor demonstra, entretanto, um intenso sentimento de solidariedade aos companheiros de trabalho e não quer que a mãe morra, embora não sonhe com sua melhora. Mesmo assim, o autor adverte logo nas primeiras páginas que seu livro é a biografia de alguém que nutre um profundo desprezo pela Humanidade.

Transitando pelo mesmo universo sombrio dos personagens de Clube da luta, como os grupos de ajuda anônimos, Victor tem um emprego tão insólito quanto seus hábitos sociais, trabalhando num museu a céu aberto em que todos os empregados usam trajes de época e fingem estar congelados no ano de 1734. Entre as punições dadas a quem se comportar como se vivesse em outro século, como, por exemplo, esquecer-se de tirar o relógio do pulso, há castigos físicos e humilhantes. Victor suporta tudo com suas observações cínicas e sarcásticas, que só não são suficientes para protegê-lo da verdade sobre sua origem.

Quando em 2002, o autor lançou "Lullaby, a novel" (aqui no Brasil lançado pela editora Rocco com o nome "Cantiga de Ninar"), Palahniuk declarou em entrevistas que este é o seu livro mais impactante pelos signos contidos, pelas simbolizações de força, de magia que faz com que crianças morram. De fato, o livro marca um diferencial acentuado na obra de Palahniuk. Em "Cantiga de Ninar" Carl Streator é um repórter solitário e viúvo que recebe a tarefa de realizar uma série de artigos sobre o que chamam de "Síndrome da Morte Infantil Súbita". Durante a investigação ele descobre uma ligação sinistra: a presença, em todos os cenários das mortes destas crianças, de antologia "Pomas e rimas ao redor do mundo", aberto na página 27 onde está impressa uma cantiga africana. Não demora para o repórter descobrir que a canção é letal quando falada ou até mesmo pensada em direção a alguém. O que acontece é que a canção, depois que penetra no cérebro de Streator, acaba tranformando-o em um assassino compulsivo. Assim, ele se une a Helen Hoover Boyle, corretora de imóveis especializada em vender casas assombradas (e a recomprá-las, muito abaixo do preço depois que as manifestações assustadoras incomodam os proprietários), e junto com Mona Sabbat, uma estudante de bruxaria e assistente de Helen e o ecoterrorista radical conhecido como Ostra, namorado de Helen, responsável por chantagens e ações indenizatórias fraudulentas contra dezenas de empresas, partem em uma viagem pelos Estados Unidos a fim de destruir todos os exemplares do livros das bibliotecas, para que suas conseqüências não se espalhem e eliminem a raça humana.

O que não se demora para perceber com a leitura deste livro é que o thriller de horror – apesar de muito bem executado – é só um pretexto para mais uma vez expor as críticas do autor a uma sociedade de consumo desenfreado e excesso de informação: verdadeiros "musicômanos", que se entretém com modelos prontos e alienantes de diversão ("Em todo caso, hoje ninguém é mais dono da própria mente. Você não consegue se concentrar. Não consegue pensar. Sempre há algum barulho se infiltrando. Cantores gritando. Pessoas mortas rindo. Atores chorando. Todas essas pequenas doses de emoção.").

Em "Cantiga de Ninar" o autor diminui um tanto, por exemplo, sua descrição dos vícios sexuais, mas nem tanto assim (há um personagem, o escroto enfermeiro Nash, que não hesita em abusar sexualmente de cadáveres de modelos que ele é encarregado de recolher). De resto, a violência gratuita foi amenizada, os psicóticos são absolutamente todos e a anormalidade é embalada para consumo e prontamente aceita.

Ser capaz de radiografar com esta precisão revestida de ironia tão corrosiva a sociedade moderna atual é o que faz a obra de Chuck Palahniuk arregimentar uma profusão de fãs a cada livro lançado. Embora seja um autor sobre o qual freqüentemente possam desabar críticas do tipo de que a literatura que produz não é o reflexo do que vê, mas exatamente o produto, é o tipo de risco a que obras assim devem se mostrar dispostas a correr. Na realidade, a obra de Palahniuk abre muita vazão a análises deste tipo, uma vez que sempre poderá ser encarada como incentivo, como agregadora de grupos perturbados o bastante tal qual os que se motivam por "ideais" como os propagados em "Clube da Luta" e que não enxergam na obra de Palahniuk a ácida crítica, a condenação, a metáfora travestida de simples entretenimento – pensam que estão diante da adoração, da divulgação de práticas e princípios por vezes doentios. Assim, e por este motivo, fica tão fácil atrelar o nome de Palahniuk a uma literatura de estranhamento (como deveria ser toda arte?), a observar como se tornou um dos autores undergrounds mais populares da atualidade, com centenas de fãs espalhados pelo mundo.

Palahniuk denuncia com humor ácido e ironia inteligente a decadência de uma sociedade consumista e sem ideais. No entanto, é mais do que necessário saber até que nível esta "fobia consumista" do autor não encontra paradoxo no próprio resultado final de seu trabalho. Afinal, não obstante o fato de terem um extraordinário número de vendas (o que, em último grau não deixa de ser um consumismo pelo novo, pela mais nova "modernidade literária"), também gera seus subprodutos e dividendos para o autor, tais quais as cinco obras suas que já estão em produção para serem adaptadas para o cinema, em graus mais ou menos adiantado de produção: "Sufoco", "Survivor", "Diary", "Invisible Monsters" e "Lullaby". Não deixa de ser a hiperinformação, mesmo que repleta de excelentes qualidades literárias, pronta para consumo.