quarta-feira, 25 de maio de 2011

Tabacaria


Álvaro de Campos

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

O Florir


Álvaro de Campos
O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos...

O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida ...

O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída...

As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem ...

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminho sem fim...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Heinrich Heine


Dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen.

"Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas."

(Tragödien: nebst einem lyrischen Intermezzo - p. 148, Heinrich Heine - 182)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor



I

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.
(...)



[Júbilo memória noviciado da paixão (1974)]
[in Poesia: 1959-1979/ Hilda hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.]

domingo, 15 de maio de 2011

Cida Moreira - back in black

Amor fati



Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer
guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem
mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!

Nietzsche, F. A gaia ciência, § 276


Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada
querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos
ainda ocultá -lo (...) mas amá-lo...

Nietzsche, F. Ecce homo, § 10


“(...) nada querer diferente, seja para trás, seja para a
frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessá-
rio, menos ainda ocultá-lo (...) – mas amá-lo...

Idem, p. 51; “Por que sou tão inteligente”, § 10.
Nietzsche, F. Ecce homo,

sábado, 14 de maio de 2011

Comentários sobre o Amor em Nietzsche


Não é a vida que justifica o amor, mas o contrário: o amor é criativo, por isso é aquela força que mantém viva a vida. Se nos habituamos ao amor, aceitamos o resto da vida tal como ela é. Só com a ‘vontade de amor’ descobrimos os aspectos possivelmente amáveis na vida: de outro modo, em geral, desaparecemos com seus aspectos repulsivos, feios e torturantes. Por isso deveríamos aproveitar a vontade de amor para encantar o mundo ao nosso redor, e a nós mesmos. Portanto, devemos nos apaixonar pelo amor.
(SAFRANSKI, Rudger. 2001; p. 254)







Instantes


INSTANTES,
[que não é de Borges]:
[quem é autor?]

"Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.

Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
e profundamente cada minuto de sua vida;
claro que tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver trataria somente
de ter bons momentos.

Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;
não percam o agora.
Eu era um daqueles que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas e,
se voltasse a viver, viajaria mais leve.

Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo"

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Eu desisto


Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças. Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa (...) Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena. Remar. Re-amar. Amar.

Caio F. Abreu

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Chegue bem perto de mim.



Me olhe, me toque, me diga qualquer coisa. Ou não diga nada, mas chegue mais perto.

Não seja idiota, não deixe isso se perder, virar poeira, virar nada. Daqui há pouco você vai crescer e achar tudo isso ridículo.

Antes que tudo se perca, enquanto ainda posso dizer sim, por favor, chegue mais perto?

(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Felizes Juntos


“Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.”

Caio Fernando Abreu em “A terra do Coração” – Pequenas Epifanias.

Por Augusto Patrini


Mais uma noite de insônia. Chega então uma manhã-tarde ensolarada. Nesta São Paulo luminosa e solar, tão diferente das tenebrosas sombras das minhas noites mal-dormidas, a semana chuvosa agora parece estar bem longe. No rádio toca: “O meu amor sozinho/ É assim como um jardim sem flor,... Estrela, eu lhe diria/ Desce à terra, o amor existe,... Não há amor sozinho...” na voz de Maria Bethânea. É a “Primavera” de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes.

Debruço um vago olhar sobre o horizonte quadriculado-urbano deste dia iluminado e puro. Azul forte brilhante no céu sul-americano da metrópole ensandecida. Hoje quero ter esperança e força, penso. Lembro dos encontros e desencontros, de nossas fugas e buscas. Tento ainda acreditar, apesar dos carros rugirem lá fora, das megeras (e seus celulares), dos canos fumegantes e de nossos amores perdidos e estraçalhados. Apesar de toda a fumaça, guerra e dor, no meio das cinzas de São Paulo e dos “meninos que choram”, quero acreditar que não estamos no tempo dos risos amarelos. Os algodões do céu, nesta manhã são feitos de solidões e buscas. Por isso continuamos, não é? Sempre.

Lembro-me, assim, talvez como você também, dos amores que tive e que perdi. Das pessoas que cruzei o olhar e partiram para sempre. Foram talvez apenas possibilidades? Ou pessoas que nos marcaram? Foram alguns (ou tantos) os olhares? Nas noites e nos dias, em museus e padarias, nas ruas e nos bares. Lembro-me também, inutilmente, das bocas úmidas e dos beijos. Das mãos em minhas mãos. Dos olhares na mesma direção e dos olhares, depois, em direções diversas:

“Happy Toguether” !

Nesse dia estranho, me lembro de um filme maravilhoso. Como o céu de hoje, colorido, triste e intenso: “Happy Together” (Felizes Juntos) é um longa-metragem que combina mais com a música do Astor Piazzola do que com a brasilidade trágica de Maria Bethânea. O realizador deste filme, Wong Kar-Wai, nascido em Hong Kong, é considerado na Europa um dos novos gênios do cinema. Ele usa de elementos kitsh, mas subvertendo sempre a linguagem e o ritmo dos enquadramentos. Kar-Wai traz em seu currículo filmes intensos na forma e no enredo como, por exemplo, “Anjos Caídos”, “Amores Expressos” e “Amor à Flor da Pele”.

Na verdade, seu penúltimo filme, “Happy Together”, seja talvez uma tragédia-filme ou um tango-filme. Daquele tipo de tragédia ou tango que nos acomete quando, entre nossos encontros e desencontros, perdemos um amor ou um amigo. O filme é a história de um amor migrante e incerto entre dois rapazes (os ótimos Leslie Cheung e Tony Leung Chi-Wai), que juntos mudam de Hong Kong para uma romântica Buenos Aires inexistente. Mais do que um simples filme que poderia ser “rotulado-reduzido” como gay, trata-se aqui de uma tragédia-farsa maravilhosamente bem encenada, ao som de Piazzolla, Caetano Veloso e Frank Zappa. O filme trata fundamentalmente daquilo que sentimos às vezes, ao vislumbrarmos alguns olhares nas ruas e nos bares, da certeza que todos vivemos perdas, encontros e desencontros em nossas vidas/buscas/viagens.

O filme faz com que nos perguntemos sobre o porquê dessa busca estranha e desse algo misterioso e intenso que arranca de nossas estranhas ausências insossas. Lembra-nos também das perdas, daqueles a quem se amava, mas que acabaram separados de nós pela vida e pelo tempo. Mas, talvez a questão maior seja aquilo que realmente buscamos no outro.

Freud disse um dia que somos pulsões de amor e morte, e é disto que é feito esse filme estranho e azul. Sua cena mais bela, e acredito, seu ápice romântico, é aquela em que os dois rapazes dançam em uma cozinha magnificamente iluminada (fotografia de Homayun Pievar). Um momento lindo e suave, onde a real possibilidade de amor intenso e verdadeiro entre seres humanos ficará para sempre eternizada na película. Apesar disso, logo vemos que esse amor, sacudido pela vida, pode tomar novos rumos. Essa enorme força da vida que tudo muda é simbolizada no filme pela visão majestosa das Cataratas do Iguaçu.

Ética amorosa

Isso nos leva a pensar na forma como praticamos regularmente nossos atos amorosos. Tudo bem que somos meio arrastados pela vida, mas você já pensou o que um beijo pode significar? Não se trata apenas de uma troca de fluídos, ou de um comportamento animal. Trata-se também de um ato consciente de entrega amorosa, de intercâmbio de emoções e sensações. Temos certa responsabilidade sobre aquilo que acontece em nossas relações afetivas.

Hoje também acho que sexo sem entrega amorosa é muito chato. Prefiro acreditar em uma espécie de ética da entrega amorosa, onde nossa prática sexual-amorosa seja pautada por troca emocional-amorosa sincera. Esse algo mais do que apenas sensualidade, faz das nossas trocas/relacionamentos algo louco e misterioso que modifica o que somos hoje e o que podemos vir a ser no futuro, tornando-nos seres humanos mais ricos e múltiplos. É disso também que trata o filme. É sobre como somos eternamente um “vir-à-ser”.

Mesmo se nos entregamos no amor e por isso sofremos, perdidos entre margaridinhas vagabundas e sacos de lixo - como cães sujos ou gatos errantes - sabemos que estamos verdadeiramente vivos. Porque a ausência do amor nos é mais insuportável que as possíveis dores da perda sempre inerente ao amor. Por isso buscamos o outro? Eu não sei. Mas quero acreditar e confio. Acredito nesse algo mais da vida (o amor), algo profundo, sim absurdo e forte: o fogo ou a brasa que queimam - dor, amor, perdição, fuga e sonhos toscos-bobos, cheios de espinhos e flores. Tudo isso, encontramos verdadeiramente no outro, naquele que nos sorri, beija ou abraça, quando nos entregamos emocionalmente de forma profunda. Mesmo que por alguns segundos, minutos, uma noite, umas horas, cinco ou cinqüenta anos.

Mas, nesta busca/entrega estamos todos divididos entre o que queremos ser e o que seremos, neste devir eterno que somos, se tragados pela força da vida. E um dia engolidos pela morte, Desejamos sermos fortes e, vibrando além desta solidão toda, cheia de falsas cores e cuspe, somos arco-íris tensos. Todas nossas bocas e penas. São esses nossos deuses e monstros, os nossos “sonhos e mentiras de Franco”.

Se nos perdemos, às vezes, entre esses tempos e essas escolhas queremos amar além, na sarjeta e na chuva, entre o céu estrelado e as tantas margaridas livres e vadias que encontramos pelo caminho da vida.

Ainda que sua vida pareça mais uma lanchonete suja de beira de estrada com aquela luz fraquinha, não se desespere. Logo, logo, aparece o olhar, a mão e a boca de outra margaridinha louca para te trazer essa coisa misteriosa que buscas. Basta acreditar!

Crônica escrita em São Paulo, 26 de setembro de 2006

sexta-feira, 6 de maio de 2011



"O amor traz a idéias e perigos".

- "Die Liebe bringt auf Ideen und in Gefahren."

Heinrich Mann; Eine Liebesgeschichte. [Uma história de amor] hg. im Auftrage des Heinrich-Mann Gesellschaft für zeitgenössische Dichtung, München: Weismann, 1953. S. 9

União homoafetiva, STF e “pecado”


Alexey Dodsworth Magnavita

Não escrevo para os que concordam com a decisão do STF de reconhecimento das uniões homoafetivas, mas para aqueles que discordam. Não faz, afinal, muito sentido tentar convencer quem já concorda. O que me interessa, aqui, é fazer algumas considerações a partir das principais argumentações de quem não gostou da decisão do STF.

Para isso, partirei do principal argumento, que é religioso: tais relacionamentos seriam “pecado”. Em momento algum pretendo convencer o leitor de que relacionamentos homossexuais não são pecado, não é isso o que se pretende discutir aqui. Deste modo, fazendo um exercício de imaginação, admitirei as seguintes afirmações como sendo corretas:

1. Deus existe, a partir de uma perspectiva cristã.

2. A vontade de Deus se revela através do livro chamado “Biblia”.

3. Por conta das instruções contidas na Biblia, lideres religiosos cristãos sabem qual é a vontade de Deus.

Não creio que seja profícuo, aqui, discutir se deus existe ou não existe, se a visão cristã acerca de deus está ou não correta, se a Biblia é realmente a palavra deste deus ou se não é. Isso é assunto pra outro momento, além de ser discussão que vai muito além da decisão do STF.

O que me parece espantoso, dentro do universo de alguns indivíduos religiosos, é que o suposto pecado do relacionamento homossexual assuma proporções imensas, em detrimento de todos os outros “pecados” que existem. Alguns pastores dedicam seu tempo quase que exclusivamente a combater este pecado (o que me parece muito sintomático).

Por vezes, o proselitismo coloca tais pastores contra seus próprios confrades. Ontem, após a decisão do STF, o pastor Silas Malafaia fez chover uma saraivada de acusações contra pessoas que partilham de sua fé religiosa. Acusou-os de “não fazer pressão suficiente” através do Twitter. O fato é que, à parte Malafaia e alguns gatos pingados, muitos expoentes do cristianismo pentecostal pouco se lixaram para a decisão do STF, partindo de um princípio muito simples: não é a existência de leis que faz as pessoas se voltarem para deus (ou para aquilo que eles entendem como sendo o chamado de deus). É o que se passa no coração desta pessoa. Vejamos o que argumentou a cantora gospel Ana Paula Valadão, após ser acusada de “omissão” por Malafaia. Disse ela, no Twitter:

Avivamento, a volta de uma pessoa ou de uma nação para Deus e Seus princípios, a meu ver não é algo que aconteça de cima para baixo…Podem haver leis proibindo isso ou aquilo e as pessoas continuarem na prática de pecado. Creio que o avivamento vem de baixo para cima, e a mudança ou estabelecimento de leis segundo os padrões de Deus serão consequência do que se passa numa sociedade em avivamento, que quer Deus. Mais do que querer mudança ou impedimento de legislação, de cima para baixo, clamo por mudança do coração das gentes, da nação, de baixo para cima. Por exemplo, se as pessoas temerem a Deus não abortarão seus bebês, ainda que haja uma lei a favor do aborto.”

Me parece que Ana Paula Valadão compreendeu sua religião melhor do que o pastor Malafaia. Enquanto este pretende impor suas crenças a todo um grupo de pessoas que provavelmente sequer partilha delas (ou, pelo menos, não do modo como ele entendeu), Ana Paula compreende a fé como um processo pessoal, e aquilo que ela chama de “avivamento” ou revelação é um processo íntimo, um movimento estritamente pessoal, que não se impõe ao outro. Sobre isso, o filósofo Agostinho de Hipona, um dos principais pensadores cristãos, já disse bem: a fé é uma graça, e as graças vêm de deus. De nada adianta exigir do outro uma fé que ele não tem, pois será uma falsa fé. Malafaia, pelo visto, não leu Agostinho, e não leu direito a própria Biblia que diz professar. Declarou ele, no Twitter: “Avivamento não é uma ação sobrenatural de Deus independente da nossa acao“. Errado. A revelação, se considerarmos o que professa a fé cristã, é algo que vem de deus, se ele quiser.

No entender de Malafaia, impor suas crenças a toda uma população é o que deus espera dele. Ele tem todo o direito de manifestar sua contrariedade, e é o que faz, continuamente. O problema é que Malafaia demoniza quem pensa diferente, e depois reclama quando é demonizado de volta. Quer dizer: ele solicita que Ana Paula Valadão faça pressão. Ela se recusa a obedecê-lo. Então ele tem a pachorra de acusá-la de não agir como uma “verdadeira evangélica”. O que podemos concluir é que ser um “verdadeiro evangélico” é fazer o que ele, Malafaia, quer. Que eu saiba, ser um verdadeiro evangélico é agir conforme deus determina em seu coração. E, para Ana Paula Valadão, ela pode contribuir para o bem do mundo de outro modo. Independentemente do meu ateismo, me parece que Ana Paula confia em deus mais do que Malafaia…

Mas deixemos o Arauto da Verdade pra lá. Vou considerar que você pensa por si próprio, a exemplo de Ana Paula Valadão.

De acordo com o IBGE, há mais de 60 mil casais formados por pessoas do mesmo sexo em nosso país. Não creio que seja fantasioso da minha parte imaginar que o número é bem maior, considerando que muitos indivíduos devem ter declarado que vivem com seu “primo” ou “prima”, ou com “um amigo(a)”. Se você acha que o reconhecimento destes casais por parte do STF é um erro, ainda assim não pode ignorar o fato de que, mesmo que o STF não reconhecesse tais casais, eles continuariam a existir.

O reconhecimento do STF, portanto, não deveria ser encarado como uma “afronta teológica” ou uma “ofensa aos cristãos”. Se você acha que um casal – que muitas vezes nem cristão é, ou seja, nada tem a ver com sua vida e sua religião – te ofende ou ofende a deus, a “suposta ofensa a deus” já existia. O STF não está preocupado com a religião alheia. Está preocupado em dirimir injustiças, e legisla a partir de argumentos laicos. Argumentos laicos não são “argumentos ateus”. São argumentos que não se pretendem atrelados a esta ou aquela religião.

Passemos a duas histórias reais, cujos nomes foram alterados. Começo com a história de Luciana. Após ter se revelado lésbica, Luciana foi execrada por sua família, palavras duras foram trocadas e nunca mais a garota sequer ouviu falar de seus pais e irmãos. Foi expulsa de casa. Neste ponto, muita gente se choca, acham que é fantasia que uma família rejeite um filho, mas isso não é nada incomum. De ontem pra hoje, colecionei declarações no Twitter: “se meu filho se declarasse homossexual, eu o expulsaria de casa”. Em alguns casos, esta ameaça é feita da boca pra fora. Em outros, é real. Eu diria que é um presente ao filho: ele se liberta de uma família que o ama condicionalmente e está livre para criar seu novo núcleo familiar, com entes queridos que, apesar da ausência de laços de sangue, o amem como ele é. O curioso – pra não usar termos piores – é que estes familiares que execram seus filhos costumam aparecer do nada após uma eventual morte ou doença incapacitante, com o intuito claro de se beneficiar materialmente. Isso não lhe parece pecado, não lhe parece injusto? O STF não pode legislar sobre os corpos dos cidadãos, não pode impedir que pessoas estabeleçam conjunções carnais homossexuais, mas pode evitar injustiças e rapinagem patrimonial.

Continuando: Luciana conheceu Márcia, por quem se apaixonou e foi correspondida. Mantiveram relacionamento estável por doze anos. Construíram uma vida em comum, o que inclui o patrimônio. Luciana tinha um apartamento em seu nome, Márcia tinha uma casa de praia. Eis que uma fatalidade ocorre: Luciana morre num acidente de carro. Mesmo que você ache que a relação entre as duas era “pecaminosa”, tente ser justo: de quem deveria ser o apartamento de Luciana? De sua companheira, que dedicou grande parte da vida a colaborar na construção deste patrimônio, ou da família que a renegou? Pois a família biológica, que renegou Luciana e sequer apareceu enquanto ela estava internada na UTI, surgiu do nada depois de sua morte, e herdou todos os seus bens materiais. Márcia teve que lutar para provar que muitos dos móveis do apartamento tinham sido comprados por ela, e não por Luciana. Lhe parece justo?

Se suas convicções religiosas – sejam elas quais forem – ainda não lhe permitiram enxergar a injustiça desta circunstância, criarei outro cenário: e se Luciana e Márcia não fossem amantes, mas apenas amigas muito próximas que moravam juntas e criaram patrimônio em comum? Mantendo amizade próxima, elas formariam um núcleo familiar fraterno, e isso deveria ser reconhecido. Você se oporia neste caso? Márcia não teria mais direito aos bens de Luciana do que a família que a execrou e em nada colaborou para a construção deste patrimônio? Porque o que está envolvido é muito mais do que o reconhecimento de apenas casais homossexuais como um núcleo afetivo. O que está envolvido na decisão do STF é o reconhecimento do conceito de “família” como algo muito mais amplo. E esta ampliação do entendimento não influencia na suafamília, que você pode constituir do jeito que seu coração, deus, o que for, determinar.

Se, para você, “família” significa um núcleo formado por marido, mulher e filhos, tudo bem. Não se pode fugir à verdade, contudo, que ninguém é impedido de se divorciar, ainda que isso seja considerado por alguns como “pecado”. A lei brasileira garante o direito ao divórcio.

Vamos a um caso mais drástico: Marcos, como Luciana, foi execrado por sua família biológica ao assumir sua orientação homossexual. Uniu-se ao namorado, André, com quem viveu por 35 anos. Certo dia, veio o diagnóstico fatal: Marcos tinha câncer em estado avançado, e apenas alguns meses de vida. André cuidou de Marcos, que terminou vivendo mais dois anos, até falecer. Assim como na história anterior, a família biológica que abandonou completamente o filho ressurgiu das cinzas, pleiteando todo o patrimônio que ele construiu junto com André. André só pôde ficar com aquilo que estava em seu próprio nome. De resto, a família biológica levou tudo, “fez a limpa”. Isso lhe parece justo?

Eu e minha irmã moramos juntos. Formamos um núcleo familiar, e por acaso temos laços biológicos. Mas ela poderia ser uma amiga, ou amigo, com quem eu teria ou não um relacionamento sexual. Isso constitui um núcleo familiar. Não é a biologia que determina familiaridade – e isso foi amplamente repetido pelos juízes no STF – e sim os afetos. Se estes afetos têm componente sexual ou não, isso não cabe ao STF legislar. Cabe, sim, reconhecer que pessoas que cuidam umas das outras precisam ter seus direitos salvaguardados.

Deste modo, espero que tenha ficado claro que o STF não “sancionou um pecado”. Afinal, se o voto fosse “não”, o tal do “pecado” continuaria a existir! Ao contrário, o STF está ajudando a impedir uma série de outros pecados: a usura, o oportunismo, a injustiça, só para citar alguns. De resto, se você estiver certo e deus existir, caberá a ele, e apenas a ele, julgar o que cada um fez de sua vida. Se você acredita mesmo em deus, confie nele. Revoltar-se é duvidar que tudo o que ocorre, ocorre segundo sua vontade. O incréu aqui sou eu, e não você.

Vitória gay, vitória do país


Fernando Barros e Silva

SÃO PAULO - Não foi apenas uma vitória dos homossexuais. Foi uma afirmação do Estado laico, do espírito democrático e do pensamento progressista. Não é pouco no Brasil.

Basta lembrar, por exemplo, que na campanha presidencial o aborto foi objeto de uma gincana obscurantista entre os candidatos "esclarecidos". Ou não esquecer que gays (de fato ou presumidos) são espancados por gangues nas ruas, como aconteceu outro dia na Paulista.

Ao reconhecer como legal a união estável entre pessoas do mesmo sexo, o STF estendeu a esses casais os direitos dos heterossexuais -partilha de bens e herança, pensão, declaração conjunta de IR etc.

Mas, além disso, ao facultar aos gays o direito de constituir família, o STF vai contra a discriminação e a favor de uma sociedade mais tolerante e inclusiva, capaz de lidar de maneira civilizada com suas diferenças e a multiplicidade da vida.

Eram dois os argumentos legais dos adversários da causa gay: 1) a Constituição diz que "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar"; 2) para ampliar esse conceito aos gays, seria preciso mudar a Carta, tarefa que caberia ao Congresso.

Gilmar Mendes respondeu a essas objeções no seu voto: "O fato de a Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não significa negar a proteção à união do mesmo sexo. É dever desta Corte dar essa proteção se de alguma forma ela não foi concedida pelo órgão competente (o Congresso)" .

Mas feliz, de verdade, foi a fórmula do relator do caso, ministro Ayres Britto: "Aqui é o reino da igualdade absoluta, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham".

Mesmo sem perder nada, foram derrotados aqueles que se sentem ameaçados pela sexualidade alheia (ou antes a sua própria). Perderam a igreja, os conservadores em geral e os homofóbicos em particular. Nem sempre o Brasil nos decepciona. Avançamos. Com a omissão do Congresso, pelas mãos do STF

Autor: Folha de S. Paulo


terça-feira, 3 de maio de 2011

Uma história de Borboletas


Caio Fernando Abreu


André enlouqueceu ontem à tarde. Devo dizer que também acho um pouco arrogante de minha parte dizer isso assim - enlouqueceu -, como se estivesse perfeitamente seguro não só da minha sanidade mas também da capacidade de julgar a sanidade alheia. Como dizer então? Talvez: André começou a comportar-se de maneira estranha, por exemplo? ou : André estava um tanto desorganizado; ou ainda: André parecia muito necessitado de repouso. Seja como for, depois de algum tempo, e aos poucos, tão levemente que apenas ontem à tarde resolvi tomar essa providência, André - desculpem a minha audácia ou arrogância ou empáfia ou como queiram chamá-la, enfim: André enlouqueceu completamente. Pensei em levá-lo para uma clínica, lembrava vagamente de ter visto no cinema ou na televisão um lugar cheio de verde e pessoas muito calmas, distantes e um pouco pálidas, com o olhar fora do mundo, lendo ou recortando figurinhas, cercadas por enfermeiras simpáticas, prestativas. Achei que André seria feliz lá. E devo dizer ainda que gostaria de vê-lo feliz, apesar de tudo o que me fez sofrer nos últimos tempos. Mas bastou uma olhada no talão de cheques para concluir que não seria possível. Então optei pelo hospício. Sei, parece um pouco duro dizer isso assim, desta maneira tão seca: então-optei-pelo-hospício. As palavras são muito traiçoeiras. Para dizer a verdade, não optei propriamente. Apenas:


1º) eu tinha pouquíssimo dinheiro e André menos ainda, isto é, nada, pois deixara de trabalhar desde que as borboletas nasceram em seus cabelos;
2º) uma clínica custa dinheiro e um hospício é de graça.

Além disso, esses lugares como aquele que vi no cinema ou na televisão ficam muito retirados - na Suíça, acho -, e eu não poderia visitá-lo com tanta freqüência como gostaria. O hospício fica aqui perto. Então, depois desses esclarecimentos, repito: optei pelo hospício. André não opôs resistência nenhuma. Às vezes chego a pensar que ele sempre soube que, de uma forma ou outra, fatalmente acabaria assim. Portanto, coloquei-o num táxi, depois desembarcamos, atravessamos o pátio e, na portaria, o médico de plantão nem sequer fez muitas perguntas. Apenas nome, endereço, idade, se já tinha estado lá antes essas coisas - ele não dizia nada e eu precisei ir respondendo, como se o louco fosse eu e não ele. Ah: nem por um minuto o médico duvidou da minha palavra. Pensei até que, se André não estivesse realmente louco e eu dissesse que sim, bastaria isso para que ele ficasse por lá durante muito tempo. Mas a cara dele não enganava ninguém, sem se mover, sem dizer nada, aqueles olhos parados, o cabelo todo em desordem. Quando dois enfermeiros iam levá-lo para dentro eu quis dizer alguma coisa, mas não consegui. Ele ficou ali na minha frente, me olhando. Não me olhando propriamente, havia muito tempo que não olhava mais para nada, seus olhos pareciam voltados para dentro, ou então era como se transpassassem as pessoas ou objetos para ver, lá no fundo deles, uma coisa que nem eles próprios sabiam de si mesmos. Eu me sentia mal com esse olhar, porque era um olhar muito... muito sábio, para ser franco. Completamente insano, mas extremamente sábio. E não é nada agradável ter em cima de você, o tempo todo, na sua própria casa, um olhar desses, assim trans-in-lúcido. Mas de repente seus olhos pareceram piscar, mas não devem ter piscado - devo esclarecer que, para mim, piscar é uma espécie de vírgula que os olhos fazem quando querem mudar de assunto. Sem piscar, então, os olhos dele piscaram por um momento e voltaram daquele mundo para onde André havia se mudado sem deixar endereço. E me olharam os olhos dele. Não para uma coisa minha que nem eu mesmo via, através de mim, mas para mim mesmo fisicamente, quero dizer: para este par de órgãos gelatinosos situados entre a testa e o nariz, meus olhos, para ser mais objetivo. André olhou bem nos meus olhos, como havia muito não fazia, e fiquei surpreso e tive vontade de dizer ao médico de plantão que era tudo um engano, que André estava muito bem, pois se até me olhava nos olhos como se me visse, pois se recuperara aquela expressão atenta e quase amiga do André que eu conhecia e que morava comigo, como se me compreendesse e tivesse qualquer coisa assim como que uma vontade de que tudo desse certo para mim, sem nenhuma mágoa de que eu o tivesse levado para lá. Como se me perdoasse, porque a culpa não era minha, que estava lúcido, nem tampouco dele, que enlouquecera. Quis levá-lo de volta comigo para casa, despi-lo e lambê-lo como fazia antigamente, mas havia aquele monte de papéis assinados e cheios de x nos quadradinhos onde estava escrito solteiro, masculino, branco, coisas assim, os enfermeiros esperando ali do lado, já meio impacientes . tudo isso me passou pela cabeça enquanto o olhar de André pousava sobre mim e sua voz dizia: * - Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Então vim embora. Os enfermeiros seguraram seus braços e o levaram para dentro. Havia alguns outros loucos espiando pela janela. Eram feios, sujos, alguns desdentados, as roupas listradinhas, encardidas, fedendo. Pensei que o médico ia colocar a mão no meu ombro para depois dizer coragem, meu velho, como tenho visto no cinema. Mas ele não fez nada disso. Baixou a cabeça sobre o monte de papéis como se eu não estivesse mais ali, dei meia volta sem dizer nada do que eu queria dizer, que cuidassem bem dele, não o deixassem subir no telhado, recortar figurinhas de papel o dia inteiro, ou retirar borboletas do meio dos cabelos como costumava fazer. Atravessei devagar o pátio cheio de loucos tristes, hesitei no portão de ferro, depois resolvi voltar a pé para casa. Era de tardezinha, estava horrível na rua, com todos aqueles automóveis, aquelas pessoas desvairadas, as calçadas cheias de merda e lixo, eu me sentia mal e muito culpado. Quis conversar com alguém, mas me afastara tanto de todos depois que André enlouquecera, e aquele olhar dele estava me rasgando por dentro, eu tinha a impressão de que o meu próprio olhar tinha se tornado como o dele, e de repente já não era mais uma impressão. Quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos brancos e sujos. Quando as transpassava, via o que tinha sido antes delas, e o que tinha sido antes delas era uma coisa sem cor nem forma, eu podia deixar meus olhos descansarem lá porque eles não se preocupavam em dar nome ou cor ou jeito a nenhuma coisa, era um branco liso e calmo. Mas esse branco liso e calmo me assustava e, quando tentava voltar atrás, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se soubesse que eu ousara.

(*) Tao Te-King: Lao Tse.

Mas alguma coisa em mim era mais forte que eu, e não conseguia evitar de ver e sentir atrás e além dos sujos bichos brancos, então soube que todos eles na rua e na cidade e no país e no mundo inteiro sabiam que eu estava vendo exatamente daquela maneira, e de repente já não era mais possível fingir nem fugir nem pedir perdão ou tentar voltar ao olhar anterior . e tive certeza de que eles queriam vingança, e no momento em que tive certeza disso, comecei a caminhar mais depressa para escapar, e Deus, Deus estava do meu lado: na esquina havia um ponto de táxi, subi num, mandei tocar em frente, me joguei contra o banco, fechei os olhos, respirei fundo, enxuguei na camisa as palmas visguentas das mãos. Depois abri os olhos para observar o motorista (prudentemente, é claro). Ele me vigiava pelo espelho retrovisor. Quando percebeu que eu percebia, desviou os olhos e ligou o rádio. No rádio, uma voz disse assim: Senhoras e senhores, são seis horas da tarde. Apertem os cintos de segurança e preparem suas mentes para a decolagem. Partiremos em breve para uma longa viagem sem volta. Atenção, vamos começar a contagem regressiva: dez-nove-oito-sete-seis-cinco... Antes que dissesse quatro, soube que o motorista era um deles. Mandei-o parar, paguei e desci. Não sei como, mas estava justamente em frente à minha casa. Entrei, acendi a luz da sala, sentei no sofá. A casa quieta sem André. Mesmo com ele ali dentro, nos últimos tempos a casa era sempre quieta: permanecia em seu quarto, recortando figurinhas de papel ou encostado na parede, os olhos olhando daquele jeito, ou então em frente ao espelho, procurando as borboletas que nasciam entre seus cabelos. Primeiro remexia neles, afastava as mechas, depois localizava a borboleta, exatamente como um piolho. Num gesto delicado; apanhava-a pelas asas, entre o polegar e o indicador, e jogava-a pela janela. Essa era das azuis . costumava dizer, ou essa era das amarelas ou qualquer outra cor. Em seguida saía para o telhado e ficava repetindo uma porção de coisas que eu não entendia. De vez em quando aparecia uma borboleta negra. Então tinha violentas crises, assustava-se, chorava, quebrava coisas, acusava-me. Foi na última borboleta negra que resolvi levá-lo para o lugar verde, e mais tarde, para o hospício mesmo. Ele quebrou todos os móveis do quarto, depois tentou morder-me, dizendo que a culpa era minha, que era eu quem colocava as borboletas negras em seus cabelos, enquanto dormia. Não era verdade. Enquanto dormia, eu às vezes me aproximava para observá-lo. Gostava de vê-lo assim, esquecido, os pêlos claros do peito subindo e descendo sobre o coração. Era quase como o André que eu conhecera antes, aquele que mordia meu pescoço com fúria nas noites suadas de antigamente. Uma vez cheguei a passar os dedos nos seus cabelos. Ele despertou bruscamente e me olhou horrorizado, segurou meu pulso com força e disse que agora eu não poderia fingir que não era eu, que tinha me surpreendido no momento exato da traição. Era assim, havia muito tempo, eu estava fatigado e não compreendia mais. Mas agora a casa estava sem André. Fui até o banheiro atulhado de roupas sujas, a torneira pingando, a cozinha com a pia transbordando pratos e panelas de muitas semanas, a janela de cortinas empoeiradas e o cheiro adocicado do lixo pelos cantos, depois resolvi tomar coragem e ir até o quarto dele. André não estava lá, claro. Apenas as revistas espalhadas pelo chão, a tesoura, as figurinhas entre os cacos dos móveis quebrados. Apanhei a tesoura e comecei a recortar algumas figurinhas. Inventava histórias enquanto recortava, dava-lhes profissões, passados, presentes, futuros era mais difícil, mas dava-lhes também dores e alguns sonhos. Foi então que senti qualquer coisa como uma comichão entre os cabelos. Aproximei-me do espelho, procurei. Era uma borboleta. Das azuis, verifiquei com alegria. Segurei-a entre o polegar e o indicador e soltei-a pela janela. Esvoaçou por alguns segundos, numa hesitação perfeitamente natural, já que nunca antes em sua vida estivera sobre um telhado. Quando percebi isso, subi na janela e alcancei as telhas para aconselhá-la: - É assim mesmo . eu disse. . O mundo fora de minha cabeça tem janelas, telhados, nuvens e aqueles bichos brancos lá embaixo. Sobre eles, não se detenha demasiado, pois correrá o risco de transpassá-los com o olhar ou ver neles o que eles próprios não vêem, e isso seria tão perigoso para ti quanto para mim violar sepulcros seculares, mas, sendo uma borboleta, não será muito difícil evitá-lo: bastará esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas, pois pousando correrás o risco de ser novamente envolvida pelos cabelos e reabsorvida pelos cérebros pantanosos e, se isso for inevitável, por descuido ou aventura, não deverás te torturar demasiado, de nada adiantaria, procura acalmar-te e deslizar pra dentro dos tais cérebros o mais suavemente possível, para não seres triturada pelas arestas dos pensamentos, e tudo é natural, basta não teres medos excessivos. trata-se apenas de preservar o azul das tuas asas. Pareceu tranqüilizada com meus conselhos, tomou impulso e partiu em direção ao crepúsculo. Quando me preparava para dar volta e entrar novamente no quarto, percebi que os vizinhos me observavam. Não dei importância a isso, voltei às figurinhas. E novamente começou a acontecer a mesma coisa: algo como borbulhar, o espelho, a borboleta (essa era das roxas), depois a janela, o telhado, os conselhos. E os vizinhos e as figurinhas outra vez. Assim durante muito tempo. Já não era mais de tardezinha quando apareceu a primeira borboleta negra. No mesmo momento em que meu indicador e polegar tocaram suas asinhas viscosas, meu estômago contraiu-se violentamente, gritei e quebrei o objeto mais próximo. Não sei exatamente o que, sei apenas do ruído de cacos que fez, o que me deixa supor que se tratasse de um vaso de louça ou algo assim (creio que foi nesse momento que lembrei daquele som das noites de antes: as franjas do xale na parede caído sobre as cordas do violão de André quando rolávamos da cama para o chão). Pretendia quebrar mais coisas, gritar ainda mais alto, chorar também. Se conseguisse, porque tinha nojo e nunca mais . quando ouvi um rumor de passos no corredor e diversas pessoas invadiram o quarto. Acho que meu primeiro olhar para elas foi aquele que tive antigamente, cheguei a reconhecer alguns dos vizinhos que nos observavam sempre, o homem do bar da esquina, o jardineiro da casa em frente, o motorista do táxi, o síndico do edifício ao lado, a puta do chalé branco. Mas em seguida tudo se alargou e não consegui evitar de vê-las daqueles outros jeitos, embora não quisesse, e meu jeito de evitar isso era fechar os olhos, mas quando fechava os olhos ficava olhando pra dentro do meu próprio cérebro . e só encontrava nele uma infinidade de borboletas negras agitando nervosamente as asinhas pegajosas, atropelando-se para brotar logo entre os cabelos. Lutei por algum tempo. Tinha alguma esperança, embora fossem muitas mãos a segurar-me. Ao amanhecer do dia de hoje fui dominado. Chamaram um táxi e trouxeram-me para cá. Antes de entrar no táxi tentei sugerir, quem sabe aquele lugar de muito verde, pessoas amáveis e prestativas, todas distantes, um tanto pálidas, alguns lendo livros, outros cortando figurinhas. Mas eu sabia que eles não admitiriam: quem havia visto o que eu via não merecia perdão. Além disso, eu tinha desaprendido completamente a sua linguagem, a linguagem que também tive antes, e, embora com algum esforço conseguisse talvez recuperá-la, não valia a pena, era tão mentirosa, tão cheia de equívocos, cada palavra querendo dizer várias coisas em várias outras dimensões. Eu agora já não conseguia permanecer em apenas uma dimensão, como eles, cada palavra se alargava e invadia tantos e tantos reinos que, para não me perder, preferia ficar calado, atento apenas ao borbulhar das borboletas dentro do meu cérebro. Quando foram embora, depois de preencherem uma porção de papéis, olhei para um deles daquele mesmo jeito que André me olhara. E disse-lhe: - Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Ele pareceu entender. Vi como se perturbava e tentava dizer, sem conseguir, alguma coisa para o médico de plantão, observei que baixava os olhos sobre o monte de papéis e a maneira indecisa com que atravessava o pátio, para depois deter-se ao portão de ferro, olhando para os lados, depois se foi, a pé. Em seguida os homens trouxeram-me e enfiaram uma agulha no meu braço. Tentei reagir, mas eram muito fortes. Um deles ficou de joelhos no meu peito enquanto o outro enfiava a agulha na veia. Afundei num fundo poço acolchoado de branco. Quando acordei, André me olhava dum jeito totalmente novo. Quase como o jeito antigo, mas muito mais intenso e calmo. Como se agora partilhássemos o mesmo reino. André sorriu. Depois estendeu a mão direita em direção aos meus cabelos, uniu o polegar ao indicador e, gentilmente, apanhou uma borboleta. Era das verdes. Depois baixou a cabeça, eu estendi os dedos para seus cabelos e apanhei outra borboleta. Era das amarelas. Como não havia telhados próximos, esvoaçavam pelo pátio enquanto falávamos juntos aquelas mesmas coisas, eu para as borboletas dele, ele para as minhas. Ficamos assim por muito tempo até que, sem querer, apanhei uma das negras e começamos a brigar. Mordi-o muitas vezes, tirando sangue da carne, enquanto ele cravava as unhas no meu rosto. Então vieram os homens, quatro desta vez. Dois deles puseram os joelhos sobre nossos peitos, enquanto os outros dois enfiavam agulhas em nossas veias. Antes de cairmos outra vez no poço acolchoado de branco, ainda conseguimos sorrir um para o outro, estender os dedos para nossos cabelos e, com os indicadores e polegares unidos, ao mesmo tempo, com muito cuidado, apanhar cada um uma borboleta. Essa era tão vermelha que parecia sangrar.

domingo, 1 de maio de 2011

Rútilo Nada



Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar-me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritível verdugo, alguém Humano, e há tantos indescritíveis Humanos feito de fúria e desesperança, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia. Mas indigno e desesperado me atiro sobre o vidro que recobre a tua cara, e várias mãos, de amigos? de minha filha adolescente? de meu pai? ou quem sabe as mãos de teus jovens amigos repuxam meu imundo blusão e eu colo a minha boca na direção da tua boca e um molhado de espuma embaça aquela cintilância que foi a tua cara. Grito. Gritos finos de marfim de uma cadela abandonada tentando enfiar a cabeça na axila de Deus. De uma cadela sim. Porque as fêmeas conhecem tudo da dor, fendem-se ou são desventradas para dar à luz e eu Lucius Kod neste agora me sei mais uma esquálida cadela, a morte e não a vida escoando de mim, musgos finos pendendo dos abismos, estou caindo e ao meu redor as caras pétreas, quem são? amigos? minha filha adolescente? meu pai? teus jovens amigos? Caras graníticas, ódio mudo e vergonha, palavras que vêm de longe, evanescentes mas tão nítidas como fulgentes estiletes, palavras de supostos éticos Humanos:

Constrangedor Louco Demente
Absurdo Intolerável

Ducente Deo começo estes escritos deveria ter dito. Tendo Deus como guia, começo estes escritos deveria ter dito.


Trecho de "Rútilo Nada", conto de Hilda Hilst

Sabato




"En esta tarea lo primordial es negarse. Defender, como lo han hecho heroicamente los pueblos ocupados, la tradición que nos dice cuánto de sagrado tiene el hombre. No permitir que se nos desperdicie la gracia de los pequeños momentos de libertad que podemos gozar: una mesa compartida con gente que queremos, una caminata entre los árboles, la gratitud de un abrazo. El mundo nada puede contra un hombre que canta en la miseria."
(La Resistencia, p.75)

Porque a medida que nos relacionamos de manera abstracta más nos alejamos del corazón de las cosas y una indiferencia metafísica se adueña de nosotros, [...] el hombre está perdiendo el diálogo con los demás y el reconocimiento del mundo que lo rodea siendo, que es allí donde se dan el encuentro, la posibilidad del amor, los gestos supremos de la vida.
(Idem p. 7-8)


Ernesto Sabato (1911- 30/04/2011)

La Rochefoucauld


Il y a des gens si remplis d'eux-mêmes que, lorsqu'ils sont amoureux, ils trouvent le moyen d'être occupés de leur passion sans l'être de la personne qu'ils aiment.


Maximes et Réflexions, suivies des œuvres mêlées de Saint Evremond, François de La Rochefoucauld, éd. Les Grands Classiques Illustrés, ~1935?, p. 92