quinta-feira, 8 de março de 2012

Existe uma estética gay?



Alfredo Fressia, poeta e jornalista uruguaio, correspondente do jornal El País em São Paulo, analisa a possibilidade de existência de uma "literatura gay"
por Alfredo Fressia *



EXISTEM ESTÉTICAS GAYS? Chamo “literatura gay” à obra produzida por uma espécie de “hipergeração” que viveu o homoerotismo em condições que tendem a desaparecer (ou atenuar-se) já há alguns anos. Agregarei a idéia de literatura “postgay”, nome que considero apropriado porque também relativiza a palavra “gay”.

Parece inquestionável a idéia foucaultiana da criação do personagem homossexual em meados do século XIX. O que não passavam de práticas eróticas que não definiam especialmente um indivíduo torna-se, a partir de então, “sintoma” externo desse novo “enfermo” que é o “homossexual”, um personagem que a ciência passa a estudar, analisar, dissecar. Casos patológicos, mas também depravados morais ou criaturas endemoninhadas, os homossexuais sofreram desde então uma perseguição tanto mais implacável quanto mais numerosa era a mão de obra consumidora consumidora de que dependia a prosperidade burguesa. O dispositivo ideológico justificou o crime de que foram objeto os “homossexuais” (com esse nome “científico” desde 1869) (1).

A história desse crime merece um espaço que excede esta nota. No entanto, deve-se destacar a colaboração que a psicanálise prestou, com demasiada freqüência, à demonização homossexual e também aos genocídios praticados desde os anos 30 por Hitler e por Stalin. Até hoje os homossexuais estigmatizados com a estrela rosada, deportados e assassinados nos campos nazistas de concentração, como os ciganos, são freqüentemente esquecidos na história dos genocídios do século 20. A traição stalinista aos ideais de liberdade sexual praticados pela revolução soviética durante os anos 20 se concretizou no assassinato e no confinamento de homossexuais em asilos psiquiátricos, emblemática aliança da repressão com a psiquiatria (2).

Dominique Fernandez (3) toma as datas de 1869 (invenção da palavra “homossexual”) e 1968 (“liberalização” de costumes) como as que encerram o pior período de perseguição contra os homossexuais (4). Numa nota jornalística (5), chamei esse período de “o século obscuro”. Explicava ali que “No terreno literário não se trata, obviamente, de tomar a imensa produção do tema homossexual anterior ao século 19 como um bloco monolítico e idílico. Mais que isso, esse é um modo metafórico e sem dúvida prático de deslindar o século em que essa literatura conheceu a pior repressão.”A repressão literária adquiriu pelo menos duas formas. A primeira delas foi a proibição, a manipulação e a mutilação de obras de tema homoerótico. Naquela nota eu citava o verso de Michelangelo “Resto prigionier d’un cavaliere armato”, deformado na tradução para “Sou prisioneiro de um coração armado de virtude” (6). As traduções decimonônicas da lírica grega e latina mutilaram sistematicamente nomes e pronomes reveladores. Nas primeiras traduções francesas de Walt Whitman, o poeta se dirigia a uma destinatária feminina, manipulação que somente se encerraria devido às denúncias de André Gide.

No segundo modo de repressão literária foi a censura e a autocensura, frente à qual Proust transforma Alberto em Albertina (a mudança do gênero da segunda pessoa tornar-se-ia prática freqüentemente revisitada), Jean Cocteau publica “O Livro Branco” (1928) sem o nome do autor, Edward-Morgan Forster não ousa publicar em vida seu livro “Maurice” (terminado, contudo, em 1913), Herman Melville torna tão sutis as alusões em “Billy Budd” (começado em 1888, publicado por seus herdeiros somente em 1924) que o leitor descuidado se despista facilmente.

Dominique. Fernandez assinala que os autores dessa literatura gay nasceram todos em meados do século : “Les fondateurs de cette culture sont tous nés -ce n’est pas un hasard- entre 1844 et 1880: Verlaine en 1844, Loti en 1850, Eekhoud, Rimbaud et Wilde en 1854, Gide en 1869, Proust en 1871, Thomas Mann en 1875, Montherlant en 1876, Forster en 1879, Martin du Gard et Zweig en 1881. Tous liés entre eux par la solidarité secrète des parias, tous errant une ‘lumière à la main’ dans les catacombes de la civilisation industrielle, à la recherche d’un impossible salut”.

Esses autores constituem a verdadeira literatura gay, uma literatura criada sobre o duplo jogo da culpa e da justificação, que tece uma rede infinita de alusões, a qual trabalha sobre a máscara e sobre o travestimento, que se compraz em remissões ao universo mítico, com freqüência greco-romano, que “milita” explícita ou implicitamente e obscurece (e às vezes alegoriza) o significado para burlar a censura, mas também se sabe e se quer decodificada pela parte do público disposta a entendê-la. Balzac não precisava recorrer a esses jogos de estilo e de sensibilidade quando cria Vautrin e Lucien de Rubempré. Em princípio, os autores que hoje em dia criam literatura de tema homoerótico tampouco. As ferozes condições da repressão no século obscuro deram a esses produtos culturais um conjunto de características que nos permite considerá-los como um “corpus” bastante coerente. Constituem o que denomino “literatura gay” (seguindo, assim, parte, dos critérios de D. Fernandez).

No caso uruguaio, mis que um conjunto de obras, o período gay produziu o silenciamento. Com a solitária, porém ambígua, exceção de Armonía Somers, o homoerotismo é um tema quase sempre ausente, ou mencionado desde a perspectiva homofóbica da ideologia dominante (7).

Com o nome “literatura postgay” designo os produtos literários de tema homoerótico posteriores ao século obscuro. Com um esclarecimento nada surpreendente: o século obscuro não se encontra encerrado em quase nenhum âmbito social. Queremos imaginar que todas as formas de repressão acabaram. Na América Latina, queremos crer no fim das perseguições contra os homossexuais em Cuba, no fim das leis repressivas às relações entre adultos no Chile, na aprovação sempre postergada da “união civil” entre pessoas do mesmo sexo no Brasil (e no resto do Continente). Desgraçadamente, a prática demonstra que estamos bastante distantes da realidade desejada, tanto em nível jurídico como no plano sócio-simbólico mais vasto, o que determina que, no momento, a estética postgay oscile entre o gozo das liberdades adquiridas e a reivindicação. Se, por um lado, esta literatura já não necessita burlar a censura oficial, herda da etapa gay a necessidade de afirmação e, com freqüência, de militância. Essa é a encruzilhada exata onde se encontram – para dar um exemplo uruguaio – os relatos de “El ojo en el espejo”, de Alvaro Fernández Pagliano (1997). Também é provável que, depois do século obscuro, todos os produtos estéticos gays levem consigo a memória dos crimes sofridos. A cultura gay também é memória da perseguição (8).

Por outro lado, nem todos os atores culturais vivenciam do mesmo modo esta etapa que deveria tender à liberdade expressiva, e isso se reflete nos produtos culturais. Na literatura postgay uruguaia, se deve constatar sua debilidade na narrativa, em contraste com uma certa exuberância na lírica. Nos últimos quinze anos, a literatura uruguaia conta com pelo menos uma dezena de poetas que abordam o tema homoerótico, enquanto os relatos que tratam o tema não passam de três livros e somente dois o abordam. Como explicar isso? Atribuí-lo a uma espécie de obscura polissemia intrínseca à lírica, onde os criadores se sentiriam com mais liberdade para expressar sem sofrer as sanções ordinárias numa sociedade homofóbica? Ou seria o próprio caráter de gueto que talvez caracterize a produção e o consumo de poesia em nossas condições , com edições limitadas e destinadas a um público que com freqüência os poetas conhecem quase pessoalmente?

Se alguma dessas hipóteses revela-se adequada, ou se ambas o são, ficará ainda mais patente que a literatura postgay não significa em absoluto uma ruptura com os produtos do século obscuro. O peso da tradição gay revela-se também em algumas características da estética neobarroca – definida por Sarduy como kitsch, camp e gay- que exacerba procedimentos estéticos já presentes em muitos produtos da etapa gay. Uruguay Cortazzo, que consagrou um esforço teórico considerável a este tema, resume bem o lado gay do neobarroco: “…A revolta homossexual (é) em grande parte um ataque a esta transcendência que a nega em sua especificidade, em sua imanência e (…) sua cultura (é) de uma provocante superficialidade: um escarnecimento de papéis e atitudes, uma perda de seriedade, uma revolução carnavalesca que altera a ordem da razão social, uma dissolução num ritual gratuito de máscaras e aparências. No neobarroco isto se traduz como um ataque à razão poética patriarcalista. Ao se minimizar o significado, reduzido a puro significante, se está justamente invertendo o sistema: a carne lingüística não está a serviço de um conceito superior: a razão está no próprio corpo, na pele fônica” (9).

Finalmente, me parece importante destacar outra característica da etapa postgay, menos relacionada à criação estritamente literária. Se nenhum fenômeno cultural é totalmente autônomo com relação aos outros fatos sócio-culturais, a estética postgay parece organizar-se sobre a dinâmica do diálogo e da “contaminação”. A cultura postgay “contamina” os produtos culturais de consumo massivo, o que se constata com facilidade nos meios criadores de imagens, em particular a televisão e a moda. O fenômeno é novo, devido, sem dúvida, à relativa novidade da própria inflação de informações a que se assiste. Ou seja, se sempre existiram gays entre os grupos formadores de opinião, na última década sua presença se torna funcional na estrutura da dinâmica cultural. O fenômeno traz consigo o desenvolvimento do consumo de produtos gays, uma indústria que não se limita a camisetas ou a danceterias de moda, mas que inclui, ainda, la disseminação de uma estética é de atitudes comportamentais.

NOTAS

1. O barbarismo “homossexual” (que junta o grego homo e o latim sexus) foi criado pelo húngaro Benkert, que defendia a liberdade dos comportamentos sexuais. Apesar de suas ulteriores conotações médicas, o termo parece hoje inevitável. A palavra gay poderia designar um modo de vida, algo mais amplo que o mero comportamento sexual. Nesta nota escrevo o

termo “gay” em itálico quando designo o período do “século obscuro”, que desvinculo da etapa “postgay”.

2. Todavia em 1971 a “Grande Enciclopédia Soviética” considera a homossexualidade como uma “perversão sexual” e uma “atração contra a Natureza” penalmente castigável.

3. “1869-1968: il faut situer entre ces deux dates ce qu’on appelle la ‘culture homosexuelle’. Avant 1869, les textes qui parlent d’homosexualité relèvent plutôt de la littérature anecdotique, de la petite histoire. Aucun homosexuel ne songe à se raconter,

parce qu’aucun ne se sent ‘différent’. Après 1968 la différence devient à la mode et alimente le marché de l’édition. Par culture homosexuelle, nous entendons donc la culture de ceux qui, mis au ban de la société par les nouvelles lois bourgeoises, ont essayé de se ressaisir, de se comprendre, de retrouver une identité grâce à l’oeuvre d’art. Culture clandestine par force et qui oscille entre la honte et la revendication.” “Grandeur et décadence de la culture homosexuelle”, Prefacio de “Les amours masculines. Anthologie de l’homosexualité dans la littérature” de Michel Larivière. Lieu Commun. Paris, 1984. (pág. 18).

4. Deve-se considerar a data 1968 como meramente emblemática. No cinema, por exemplo, se 1968 é o ano de “Teorema” de Pasolini, é também o de “Z”, de Costa-Gavras, um filme que atribui a condição homossexual a um assassino fascista. (A mesma atitude homofóbica se encontrava em “Roma, Cidade Aberta”, 1945, de Roberto Rosselini, que apresentava uma lésbica torturadora. Também Visconti, cuja obra revela un homossexual angustiado pela culpa, pinta a homossexualidade na ascensão do nazismo em “O Crepúsculo dos Deuses”, isto em 1969).

5. “Brecha”. 2 de agosto de 1996.

6. Extraí este dado, assim como muitos outros, do ensaio “La rapt de Ganymède” do mesmo Dominique Fernandez (Grasset, Paris, 1989): “Les poèmes de Michel-Ange ne sont publiés qu’après sa mort. Le plus célèbre de ses vers, ‘Resto prigionier d’un cavaliere armato’, est une allusion on ne peut plus claire à la passion du poète pour le jeune Tommaso dei Cavalieri.

L’arrière-petit-neveu de Michel-Ange, qui s’est chargé de la publication posthume, dénature ce vers, qui devient: ‘Je reste prisionnier d’un coeur armé de vertu’. Il a fallu attendre jusqu’à 1897 pour qu’un érudit allemand examinât les manuscrits et restituât le jeu de mots provocant.” (p. 222).

7. Verdade que existe o ensaio “Alexis ou o significado do temperamento urano”, de Alberto Nin Frías, Javier Morata editor, Madrid, 1932. O interesse do ensaio reside na estratégia com que Nin Frías negocia com a homofobia (que é ali sazonal, não especialmente uruguaia) o reconhecimento do “uranismo” de vários gênios da arte universal (Virgílio, os gregos, o

Renascimento florentino, Shakespeare, França, a Espanha moderna). O resultado é um documento bastante mais útil para entender a época de sua produção que um eventual “significado do temperamento urano”. Do mesmo autor se deve assinalar

também o relato “La fuente envenenada” (1911). Também devemos versos de tema homoerótico ao poeta Angel Falco (“Vida que canta”, 1908) que incluí em minha colagem “Amores impares” (1998).

8. O tema da memória das perseguições é constitutivo de quase todos os grupos de militância gays no Brasil (a experiência latino-americana que conheço melhor). Vários grupos relevam e repertoriam anualmente os assassinatos cometidos contra homossexuais no país. O “Grupo Gay da Bahia” funciona como “central” dos dados que são apresentados à ONU. Não é

casual que seu presidente, o antropólogo Luiz Mott, seja um especialista na Inquisição lusobrasileira.

9. “Jaque”. 6 de maio de 1987.

(*) Alfredo Fressia (Uruguai, 1948). Poeta e ensaísta. Autor de livros como “Noticias extranjeras” (1984), “Frontera móvil” (1997) e “Veloz eternidad” (1999). Tem sido colaborador frequente do suplemento El País Cultural (Uruguai) e da Banda Hispânica (Brasil). Contato: alfress@uol.com.br

(Texto traduzido da revista eletrônica Agulha, com permissão do autor)

2 comentários:

Naiara disse...

meus sinceros cumprimentos pela postagem!

Ítallo Andrade disse...

Texto incrível, essa estética gay enraizada a concepções formais de um ideal de belo. Parabéns pesquiso arte homoerótica no Brasil e gostaria de me corresponder itallochico@gmail.com Atenciosamente Ítallo Andrade