sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Mídia e Estado seguem em insidiosa ação de deslegitimação das mobilizações e incentivo à violência





Em greve há exatos 60 dias, os professores da rede municipal do Rio de Janeiro protagonizam o grande movimento reivindicatório do momento, tornando-se, portanto, os novos alvos da disputa ideológica em torno dos atos de rua, e seus significados, que vêm colocando o país de manifesto. A pauta da categoria em greve foi praticamente substituída pelas polêmicas em torno de violências nos protestos, seja por parte da polícia ou do novo ator político da cena, o black bloc.

“Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam”, disse ao Correio da Cidadania o historiador Mario Maestri, em entrevista que discute a violência do Estado, da mídia e também a atuação e a pertinência da tática do bloco negro, condenados ou exaltados dentro dos próprios debates da esquerda.

Maestri não mostra deslumbramento com a audácia dos ainda pouco interpretados ativistas de preto, mas pondera a discussão destacando a incessante atuação da mídia (que, não custa lembrar, pediu e recebeu o sangue dos manifestantes antes da virada de 13 de junho), aliada aos grupos estabelecidos no poder, no sentido único e exclusivo de desmobilizar os movimentos através do medo, enquanto omite toda a barbárie policial.

“Quando de greves, (a mídia) foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos”, assinala o historiador gaúcho.

Em sua visão, a explosão de junho ainda não criou o impulso posterior para a formação de um grande, e mais unificado, movimento em torno das necessidades essenciais, entre outras coisas porque “vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins dos anos 1980”, além de faltarem maior organização partidária e sindical para dar conta da magnitude do momento e capitalizá-lo em favor das causas e organizações populares.

A entrevista completa com Mario Maestri pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como vê o país após as multitudinárias manifestações de junho, com a atual retomada de movimentos populares Brasil afora? Vivemos uma retomada do fôlego da cidadania e, quem sabe, da construção de uma nova democracia?

Mário Maestri: Não vejo cenário social e político tão positivo. Apesar de sua indiscutível importância para a consciência de enormes parcelas da população, as manifestações de junho não abriram uma nova etapa histórica, modificando qualitativamente a correlação de forças entre o mundo do capital e do trabalho. Foram, sobretudo, a explosão do difundido mal estar de imensas parcelas da nossa sociedade, protagonizada pelos segmentos assalariados ditosinferiores médios urbanosAs manifestações não conseguiram construir uma pauta de reivindicações clara, núcleos organizacionais e direção reconhecida.

Sobretudo, o operariado não interveio naquelas manifestações, ou após elas, quando do fiasco da tentativa da burocracia sindical de reconquistar o espaço simbólico-representativo perdido. Uma imobilidade devida substancialmente à baixa consciência e organização dos trabalhadores, os únicos segmentos sociais capazes de sustentar efetivamente um projeto de democratização social e política de largo fôlego.

Os aparatos de domínio de nossa habilidosa e despótica sociedade de classe procuram absorver e metabolizar o desequilíbrio produzido pelas manifestações – o que conseguem em um grau certamente não uniforme, em relação aos diversos segmentos sociais e diversas regiões do país, como prova a atual situação do Rio de Janeiro. Nesse processo, desempenha importante papel a mídia, sobretudo a televisiva, articulada explícita e implicitamente com os órgãos estatais. Foi e segue a insidiosa ação de deslegitimação e neutralização midiática das mobilizações, que alcançaram enorme consenso entre a população.

Correio da Cidadania: Como tem ocorrido esse processo de desconstrução do apoio às manifestações de junho, e das que se seguiram a ela, pela mídia?

Mário Maestri: Em junho, após o ataque frontal às mobilizações, a grande mídia procurou redirecionar sua retórica, devido ao caráter fluvial e apoio geral da população às demonstrações de rua. Por um lado, procurou influenciar politicamente o movimento, apresentando-o como anti-político, anticorrupção, anti-esquerda, diluindo suas reivindicações materiais – passagem, saúde, educação. Por outro, dividiu os manifestantes em bons e maus e as manifestações em positivas (aceitáveis) e negativas (abomináveis). Tudo segundo os padrões maniqueístas das narrativas televisivas triviais. Uma divisão com objetivos estratégicos.

A mídia apresentou as manifestações positivas como constituídas por cidadãosconscientes, e as negativas, por baderneiros, depredadores, anarquistas, arruaceiros. Mesmo sendo marginais os atos definidos como antissociais, e não raro encontrarem-se em contradição com as mobilizações, provocando comumente o repúdio dos manifestantes, a mídia televisiva centrou obsessivamente neles as imagens e os comentários. Procura assim fixá-los e generalizá-los na retina do público, em processo consciente de intoxicação social, como o cerne das mobilizações, sua verdadeira essência. Procedimento reproduzido, em suas esferas de atuação, pelos grandes diários e revistas, por parlamentares, por cientistas sociais etc.

Uma sintaxe de divulgação televisa dos movimentos sociais que, midiatizando incessantemente as imagens-comentários desses fatos marginais, apresenta-os como elementos centrais, deslocando o conteúdo e essência dos fatos, como proposto. Prática generalizada pela grande mídia, que, quando de greves, foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos.

Nas manifestações de junho e nas mobilizações sucessivas, raramente os repórteres aproximavam-se dos manifestantes para ouvir seus pontos de vista, enquanto eram regularmente entrevistados representantes das forças policiais ou comentados os danos causados pelos baderneiros. Os depoentes enquadrados eram e são quase essencialmente os que corroboravam os conteúdos conservadores propostos pela mídia para as mobilizações. A apresentação de um comentário se fixa como a opinião geral, ainda mais quando são diversos depoentes.

Correio da Cidadania: Como você encara a forma com que o Estado lida com as mobilizações populares? Há articulação entre o Estado e a grande mídia? O que pensa de grupos como, por exemplo, a Mídia Ninja?

Mário Maestri: Esse processo de demonização e de criminalização da luta social deu-se em íntima aliança com o Estado. Sobre muitos atos de violência midiatizados são abundantes as provas e indícios de que foram e são promovidos, incentivados ou viabilizados pelos órgãos policiais. Diante dos olhos atônitos da população, ataques a bens públicos valorizados como orelhões, paradas de ônibus, bancos de praças, vidraças de prédios, de moradias etc. processam-se longamente, sem inibição, fartamente filmados, enquanto manifestantes são agredidos pela polícia, longe do enquadramento faccioso da mídia.

Esse processo de seleção da imagem e da informação pela grande mídia tem sofrido desconstrução, ainda que limitada, permitida pela verdadeira democratização relativa da captação e divulgação da imagem, através, sobretudo, da filmagem por celulares, e sua divulgação no facebookyoutubeetc. Essa espécie de guerrilha da imagem e de seus conteúdos tem constrangido comumente a grande imprensa, pautando-a e neutralizando-a, relativamente. Propostas como a Mídia Ninja são ensaios de salto de qualidade em possibilidades ainda pouco aproveitadas pelo movimento social organizado.

A pronta criminalização por parlamentos estaduais do uso de máscaras em manifestações – a máscara é característica do criminoso – registrou igualmente a sinergia perfeita e imediata entre os órgãos legislativos do Estado, os órgãos repressivos e a demonização das manifestações pela grande mídia. Sobretudo em um Estado em que a polícia mata e tortura sistematicamente, sobre a eterna justificativa ou desculpa das autoridades superiores de que não sabiam, é um direito indiscutível do manifestante não revelar sua identidade.

Correio da Cidadania: E como vê, especificamente, a atuação de grupos como os Black Blocs, que também têm se destacado e despertado polêmicas na cena política?

Mário Maestri: É inegável que alguns atos indiscriminados de depredação urbana foram produzidos por jovens que se colocam como parte do campo popular e da esquerda, não raro se reivindicando da ideologia anarquista – certamente do anarco-individualismo, que conheceu derrapagem terrorista, e não do anarco-sindicalismo. Defendem explicitamente uma didática e uma estética da violência, de pretenso cunho político, materializadas na depredação de vidraças de bancos, de prefeituras, de assembleias legislativas e outros símbolos do grande capital e de poder político legislativo e administrativo, que, com razão, são crescentemente odiados por segmentos populares.

Paradoxalmente, a midiatização exacerbada e interessada desses atos tende a alimentar e fortalecer sua prática por frações politicamente atrasadas da juventude, inebriadas por um possível protagonismo, que nos fatos parasita o movimento de massas ao qual aderem formalmente. Protagonismo que disputa indiscutivelmente a hegemonia ao movimento de massas. Essas práticas se fortalecem devido à falta de alternativa política e à lumpenização material e cultural à qual o capitalismo lança parte significativa da juventude.

A destruição enquanto estética, didática e prática sistemáticas é própria de segmentos médios radicalizados ou marginalizados, que veem nos objetivos ou nos símbolos que destroem fetiches que os atraem, mas pelos quais são rejeitados na esfera do consumo, e desconhecidos, na da produção. Ela é estranha ao mundo do trabalho, sobretudo organizado, que se objetiva e subjetiva através da construção social – e não da destruição – dos bens materiais e imateriais, e de cujo gozo é fortemente alienado.

Correio da Cidadania: Como podemos definir o fenômeno Black Bloc?

Mário Maestri: O Black Bloc é a organização de jovens por afinidade, em torno de núcleos organizados, facilitada pela mídia social. São, sobretudo, produto da derrapagem de sentimentos antissistema e de tendências protagonistas de jovens radicalizados ou simplesmente atraídos pela destruição e pela violência, em um mundo que não lhes oferece sequer como possibilidade longínqua a perspectiva e o prazer da construção e autoconstrução. A esses grupos se juntam indiscutivelmente provocadores e jovens marginalizados atraídos pela prática da violência.

Na França, a cada ano novo, centenas de automóveis são simplesmente incendiados por jovens da periferia parisiense e das grandes cidades das províncias. Após isso, recolhem-se à vida degradante e excludente das grandes periferias urbanas em que vivem embretados centenas de milhares de jovens pobres e sem trabalho, em boa parte de origem extra-francesa, mais ou menos distantes, não raro com crescente escolarização.

Do reconhecimento das origens sociais desses comportamentos, não podemos e não devemos promover sua elevação ao status de ação política progressiva. É indiscutível a utilização de tais atos contra o movimento social, do qual o Black Bloc disputa o protagonismo, desviando e enfraquecendo o seu sentido político e social. São indiscutíveis a infiltração e a manipulação policial e política desses grupos, mesmo devendo seu surgimento às razões assinaladas. O movimento social deve defendê-los, se necessário, mas criticando esse tipo de atuação e, sobretudo, delimitando as fronteiras políticas e geográficas com os mesmos.

Correio da Cidadania: Nesse contexto, como enxerga a luta contra a repressão policial violenta das manifestações populares? A desmilitarização da polícia, bandeira hoje na boca de tantos coletivos, teria papel nesse processo?

Mário Maestri: A discussão do fenômeno do Black Bloc é dificultada porque, aqui e ali, esses grupos confrontam-se com as forças policiais que reprimem violentamente o direito inalienável de manifestação e demonstração política e sindical da população. Contudo, mesmo nesse caso, desempenham papel nefasto, ao se apresentarem como falso sucedâneo da necessária organização da autodefesa das mobilizações populares.

Nesse sentido, as organizações políticas de esquerda, como o PSTU, que criticarem grupos como o Black Bloc, sem proporem e avançarem a autodefesa organizada das mobilizações, que proteja os manifestantes e estabeleça os limites geográficos e políticos das demonstrações, professam apenas pacifismo intrínseco, absolutamente estranho à tradição do mundo do trabalho, em indiscutível processo de acomodação às instituições dominantes.

Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam. Prática que demonstrará, igualmente, que somente uma população organizada consegue conquistar mais paz e mais ordem, ao limitar e reprimir o poder de intervenção das forças policiais, agentes da desordem, sobretudo em um Estado que pratica histórica, sistemática e impunemente a violência contra sua população.

O princípio da auto-organização da defesa das manifestações, para obter e manter o direito de manifestação e a ordem pública, diante de Estado promotor da violência e da desordem, aponta igualmente para a exigência da desmilitarização da polícia e sua colocação sob o controle e a vigilância diretas das comunidades organizadas, às quais a polícia deve apresentar contas e se submeter. Apenas o exercício da autovigilância e do autocontrole dos locais de moradia e de trabalho, por seus próprios membros organizados, permitirá minimizar a violência urbana e extra-urbana, democratizando tendencialmente a sociedade.

Correio da Cidadania: Você não enxerga, portanto, avanço qualitativo das forças populares no Brasil, quanto à organização e às políticas, depois de junho. Que medidas ou atitudes seriam, então, essenciais para capitalizar um cenário de efervescência política e social?

Mário Maestri: A reconquista parcial da situação pré-junho, que certamente não conseguiu, ainda, dissolver as conquistas no nível de consciência e das práticas de importantes parcelas da população, registra-se na atual recuperação da avaliação positiva da presidenta, favorecida pela tímida expansão econômica, pela manutenção do emprego, por medidas como o Mais Médicos e pela denúncia na ONU da ingerência estadunidense. Nem que, aparentemente, tudo parece retornar como “dantes, no quartel de Abrantes”!

A negativa da Justiça de reconhecimento do partido de Marina Silva, que a obrigou a apear de sua demagogia anti-partido/anti-política, circunscreve o apoio do grande capital ao petismo e ao seu programa de escorcho social e alienação dos bens públicos e nacionais – salários irrisórios; privatização dos portos, aeroportos, petróleo, comunicações etc. Tudo sugere a reeleição da Dilma Rousseff, talvez sem segundo turno, em 2014, caso não tenhamos acidentes de percurso, é claro.

As atuais mobilizações possuem caracteres distintos em relação às multitudinárias de junho. De menor significado e repercussão, temos por um lado movimentos estudantis e urbanos diversos, ainda sob a influência e impulso dos sucessos de junho. Por outro lado, importantes e combativos movimentos de segmentos assalariados médios, como os dos bancários; os dos trabalhadores do Correios; os dos professores, com destaque para os do Rio de Janeiro, que transbordam os marcos da reivindicação profissional. Eles expressam o mal estar social nascido de arrocho salarial e da degradação das condições de trabalho e de existência – elevadas jornadas de trabalho, saúde, educação, mobilidade urbana etc.

Todas essas lutas certamente sofreram influxos positivos das jornadas de junho, que esgotaram relativamente seu dinamismo, como tendem a se esgotar esses importantes combates singulares, sobretudo devido à inexistência, sequer como tendência clara, de movimento de unificação regional e nacional, política e orgânica, dessas lutas. Ou seja, não se vislumbram órgão sindical centralizado e partidos de classe capazes de proporem e dirigirem essa imprescindível unificação e centralização, capaz de enfrentar um Estado do capital, ferreamente centralizado e unificado, sobretudo quando se trata de impor a exploração e reprimir as lutas e reivindicações sociais. Vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins do anos 1980.

A proposta da unidade sindical dos trabalhadores e assalariados, em torno de poderosa central sindical, foi liquidada pela ação do Estado burguês coadjuvado pelas organizações de esquerda com alguma força. Como as igrejas evangélicas, as centrais sindicais transformaram-se em espécie de caça-níqueis maravilhosos, capazes de gerar enormes ganhos econômicos, das quais nenhum grupo político com alguma força abre mão. Atomização e fatiamento que debilitam política e organicamente a luta e a organização dos trabalhadores. A mera centralização qualitativa dos trabalhadores em uma só central sindical fortalece ideologicamente o movimento e cria as melhores condições para mobilizações que questionem as direções pelegas. A atomização sindical é literalmente contrarrevolucionária.

Os partidos que se definem de esquerda também foram absorvidos pelos prazeres da gestão, mesmo marginal, do Estado burguês. A conquista de posições parlamentares e suas benesses embriagaram, sem exceções, os principais partidos da esquerda no Brasil, que literalmente nada têm a dizer, a não ser retoricamente, ao mundo do trabalho. Preocupam-se essencialmente com a participação nas próximas eleições, para conseguirem eleger mais alguns deputados e vereadores, os que já os têm, e obter os primeiros parlamentares, os que não os têm.

No Rio Grande do Sul, no contexto da enorme repressão do senhor Tarso Genro aos professores da rede de ensino público estadual, aos quais nega o próprio piso legal, a senhora Vera Guasso, presidente estadual do PSTU, aceitou convite para sentar-se no canapé do governador, para desdramatizar um excesso dos órgãos policiais do Estado (perquirição policial de moradia de militantes) contra o movimento social dos tantos que já se transformam em norma também no Rio Grande do Sul. No que foi seguida imediatamente pela presidente regional psolista! Tudo para obter um reconhecimento e respeitabilidade institucionais capazes, talvez, de avançar os escores eleitorais.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

Poder local e educação: os candentes caminhos de uma ação transformadora

• Por Magda Furtado

Quando se fala em democratização das instâncias decisórias no âmbito educacional, muitos críticos temem a perda da qualidade da educação clássica, o enfraquecimento da autoridade docente e a desintegração da unidade de um sistema de ensino. Afirmamos, entretanto, que esses atributos já se encontram esgarçados, e que se trata na verdade de resgatá-los num processo de ressignificação, impregnando-os de valores como liberdade, responsabilidade e construção de sujeitos participantes.
“Eu queria, portanto, deixar aqui uma alma cheia de esperança.
Para mim, sem esperança não há como sequer começar
a pensar em educação.”
Paulo Freire, em
Mudar é difícil, mas é possível (1)
1- As possibilidades do poder local
Nem sempre os eleitores têm conhecimento das atribuições de cada esfera do poder; mesmo entre aqueles de maior grau de instrução e informação, há uma grande cobrança por resultados em áreas que não estão inteiramente ao alcance do poder local. Assim, entre as reivindicações mais comuns a propósito da eficiência dos serviços públicos, aparecem segurança (que é atribuição dos estados), saúde (encargos compartilhados entre as três esferas), transporte (parte no âmbito estadual, parte municipal) e educação (apenas o ensino fundamental e o infantil são atribuições do município).
Em educação, há muita solicitação, especialmente nas comunidades carentes, por escolas técnicas. Embora nada impeça que o município instale uma rede suplementar de cursos profissionalizantes de nível médio, caso o faça não só não receberá qualquer estímulo financeiro dos governos estadual e federal, como também não poderá contabilizar o montante empregado nos 25% das receitas totais que deverá destinar à rubrica “gasto com educação” no orçamento. Isso porque o ensino médio, seja técnico ou de formação geral, é atribuição constitucional dos estados. Mesmo assim, dentre as competências da prefeitura, a educação é área que está mais a seu alcance transformar. Na segurança pública, em termos de ação direta o prefeito fica de mãos atadas; na saúde os hospitais municipais recebem o reflexo da insuficiência da ação estadual e federal. Na educação fundamental e infantil, cada município se responsabiliza unicamente pelos alunos residentes em seu território, ao contrário da área da saúde, que, no caso das grandes cidades, recebe pacientes vindos de toda a região metropolitana em busca da melhor estrutura de seus hospitais. Quanto mais uma rede de saúde municipal melhora, tanto mais atrai pacientes do estado inteiro; assim, o aumento da demanda anula parcialmente os investimentos feitos. Já o planejamento na área de educação não está sujeito a esses fatores incontornáveis.
Entretanto, o investimento em educação demora a apresentar resultados visíveis e, devido a seu custo, costuma ser preterido por governantes em busca de ações de impacto imediato. De fato, intervenções pontuais, como um aumento emergencial de salários dos professores e a construção de prédios escolares, são importantes, mas ainda não bastam para um salto qualitativo na área da educação de base. Para uma verdadeira ação transformadora, o poder local precisa apostar no comprometimento dos principais interessados na qualidade da educação, ou seja, a comunidade escolar. A atuação radicalmente democrática fortalece medidas como a construção coletiva do projeto político-pedagógico e o estabelecimento de conselhos escolares comunitários com poder decisório. Em termos acadêmicos, a educação de tempo integral é o ideal, mas, como isso envolve a duplicação de toda a rede e a contratação do dobro dos profissionais atuais, só pode ser pensada a médio prazo e gradativamente. A primeira etapa certamente poderia ser implementada em comunidades carentes, onde as crianças têm menos acesso a bens culturais em casa e freqüentemente enfrentam a ausência dos familiares. Nesses locais a escola poderia funcionar também como um centro cultural e esportivo, aberta a toda a comunidade também nos fins de semana.
É bom deixar claro que nada disso é possível sem a melhoria geral das condições materiais de trabalho e a valorização do corpo docente e técnico em termos salariais e de formação. Nesse sentido, o prefeito será responsável por um plano que articule numa equipe capacidade técnica, experiência prática e sensibilidade política para apresentar prioridades orçamentárias e etapas de execução.
Evidentemente temos clareza de que a educação isoladamente não é capaz de transformar a realidade. Os tentáculos ideológicos do capitalismo, como a mídia, envolvem consciências e as seduzem pela atração de um consumismo que não está ao alcance de todos. Além disso, as limitações do sistema sempre atuarão no sentido de restringir verbas e reclamar pagamentos de juros das dívidas locais, sem mencionar a competição do sistema privado de ensino, para o qual não interessa a melhoria dos serviços públicos a ponto de lhe roubar a clientela. Seus defensores certamente farão oposição inclemente a todas as iniciativas que visem a ampliar a capacidade do município de fazer frente às despesas com o serviço público de qualidade. Mas, mesmo com todas essas dificuldades, está nas mãos do poder local a possibilidade de fazer com que diminuam um pouco as desigualdades de oportunidades entre os cidadãos – nesse sentido, a educação é um importante instrumento de justiça social. São candentes os caminhos, porém suas brasas podem iluminar também outras trilhas que temos a seguir para construir um novo socialismo.

2- Os ares democráticos fertilizam a aprendizagem
Quando se fala em democratização das instâncias decisórias no âmbito educacional, muitos críticos temem a perda da qualidade da educação clássica, o enfraquecimento da autoridade docente e a desintegração da unidade de um sistema de ensino. Afirmamos, entretanto, que esses atributos já se encontram esgarçados, e que se trata na verdade de resgatá-los num processo de ressignificação, impregnando-os de valores como liberdade, responsabilidade e construção de sujeitos participantes. A unidade do sistema de ensino deve ser considerada numa relação dialética com a diversidade social existente mesmo numa pequena cidade. Isso acarreta a necessidade de adequações de métodos de aprendizagem e avaliação, que precisam ser discutidas com a comunidade envolvida. Quanto à autoridade docente, ela se fortalece quando está apoiada não em meros esquemas punitivos, mas sim na experiência, no esclarecimento dos limites e na atribuição de compromissos a cada um dos segmentos. Já a educação clássica felizmente se transformou muito, e ter o conhecimento dessa revolução a cada dia, através da tecnologia interativa e de cursos de atualização, é um direito de todos os professores.
A sugestão da criação de conselhos escolares comunitários se fundamenta na evidência de que o poder central não tem como acompanhar todos os detalhes que envolvem a execução do projeto político-pedagógico em cada uma das unidades da rede municipal. Nesse caso, o rolo compressor da uniformização muitas vezes mata no nascedouro uma boa idéia de um membro da comunidade que poderia fazer toda a diferença na superação de alguma dificuldade local. O conselho escolar seria presidido pelo diretor da unidade e composto por representantes dos professores, servidores técnico-administrativos, alunos, pais e associação de moradores ou outras entidades do movimento social, todos eleitos por seus pares. Teria a função de deliberar sobre questões locais e de levar ao conselho municipal aspectos que envolvam alterações no projeto político-pedagógico. Seriam também apresentadas ao conselho municipal as sugestões que tiverem alcançado êxito na vivência daquela escola, para que sejam objeto de análise e possível adaptação para o conjunto da rede.
O conselho escolar, com algumas variações e outra nomenclatura, já é realidade em alguns sistemas educacionais. Entre os benefícios dessa democratização destaca-se a maior adesão da comunidade ao processo educativo como um todo. Ao participar das instâncias decisórias, os diversos segmentos se comprometem com a busca de resultados, que passam a representar vitórias coletivas. Mas é preciso frisar que esse conselho precisa ter poderes deliberativos nos aspectos referentes às especificidades locais, como recomenda Paulo Freire no texto “Educação e participação comunitária”(2). Caso contrário, fica esvaziado na prática e corre o risco de se tornar uma instância meramente legitimadora das propostas do poder central, fornecendo-lhe um verniz progressista.
3- A valorização dos profissionais da educação precede qualquer outra ação
Nada é possível fazer em educação enquanto os profissionais se sentirem acuados, desestimulados e descrentes no potencial de sua atuação. Portanto, sua experiência será sempre o vetor de qualquer ação transformadora. A valorização salarial é apenas o começo do processo e virá no bojo de um plano de carreira que estimule financeiramente a capacitação. Evidentemente não se pode falar em mudança verdadeira sem que os profissionais tenham condições de se atualizar, enriquecer sua vida cultural, fazer cursos de pós-graduação e compartilhar a evolução do conhecimento em nossa era. Só assim a carreira do magistério se tornará atrativa para as novas gerações. Outra meta de crucial importância e que requer cuidadoso planejamento é tentar fixar o maior número possível de professores em uma escola, em regime de dedicação exclusiva.
4- Financiamento e municipalização: entraves e perspectivas
Até agora enfatizamos os benefícios da descentralização da educação, ao falar das possibilidades da ação transformadora do poder local. Entretanto, conhecemos os percalços pelos quais passa a municipalização do ensino fundamental em um país de enormes desigualdades regionais e sociais como o Brasil(3). Esse processo teve início a partir da década de 50 e seu grande incentivador foi Anísio Teixeira, que defendeu a descentralização como estímulo à contextualização das políticas educacionais e reforço da autonomia municipal (4). Acelerou-se a partir da Constituição de 1988 – que estabeleceu o nível fundamental como obrigação dos municípios, atribuindo aos estados o ensino médio e à União o nível superior – mas ainda resta inconcluso. Assim, enquanto em alguns municípios com boa arrecadação ele ocorreu sem grandes traumas, vários outros simplesmente não têm como custear uma rede completa de educação infantil e fundamental, apesar da complementação do Fundeb (fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e valorização dos profissionais da educação)(5). Mesmo em algumas grandes cidades ainda há uma rede estadual complementando a oferta, principalmente no segundo segmento do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano, de acordo com a nova nomenclatura) e na chamada pré-escola, que é considerada praticamente um luxo pela administração pública e tem disponibilidade bastante reduzida. Já a rede federal de ensino, por seu ínfimo tamanho (menos de 1% na cidade onde tem maior presença, o Rio de Janeiro), por seu caráter de suplementação (já que a atribuição federal é o nível superior), e por receber maiores recursos governamentais, não pode ser tomada como parâmetro nesse quadro nacional em que predominam as discrepâncias regionais e sociais.
Atualmente o governo federal proclama que a universalização do ensino básico (nomenclatura que engloba o ensino fundamental e o médio), que se iniciou na década de 50, está completa, e que o desafio agora é a alcançar níveis razoáveis de qualidade. Diversos educadores atribuem esse crescimento sem qualidade à aceleração do processo de municipalização, reforçada por prazos exíguos estabelecidos por legislação complementar nos estados. As expectativas de aumento de verbas com a criação do antigo Fundef (hoje Fundeb) geraram uma corrida desordenada para a criação de redes municipais através de transferências de responsabilidade do governo estadual sem que houvesse planejamento e suporte financeiro adequado. Só receberiam os repasses do Fundeb os sistemas de ensino que estivessem adequados à nova legislação que determina as competências de cada esfera. Muitos municípios viram nessa obrigação uma questão apenas “imobiliária”, que se resolveria principalmente com a construção de prédios escolares, sem critérios adequados para a contratação de pessoal qualificado. Houve um notório aumento de matrículas de ensino fundamental nas redes municipais, sem que houvesse condições de oferecer um ensino com padrões mínimos de qualidade. Outros municípios continuam sem ter como assumir essa atribuição, dada a evidente insuficiência desses aportes financeiros. Os estados, ainda ocupados com esse processo de transferência do ensino fundamental, não puderam investir o suficiente na expansão do ensino médio, sobre o qual têm responsabilidade constitucional. Os críticos do processo vêem nessa corrida pela municipalização uma mera desoneração de responsabilidades financeiras por parte da União, em primeiro lugar, e secundariamente por parte dos estados. O custo calculado por aluno precisa subir, bem como as transferências por parte da União. O resultado desse açodamento na municipalização está patente hoje nos índices catastróficos das avaliações da educação básica no Brasil – mesmo considerando os pertinentes questionamentos que têm sido feitos a esses exames quantitativos.
Conhecer as limitações nos faz manter os pés no chão, mas a fertilidade do terreno nos resgata do risco do imobilismo. É candente a conclusão de que, tendo nas mãos do poder municipal o sistema de ensino fundamental e infantil, não se pode desperdiçar a oportunidade de intervenção direta de um governo comprometido com a construção da justiça social. Essa ação transformadora deixará marcas e unirá mais braços para a elaboração coletiva de um sonho maior, de socialismo e liberdade.

(1) FREIRE, Paulo. Mudar é difícil, mas é possível. In.: — Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 171.
(2) FREIRE, Paulo. Educação e participação comunitária. In: — Política e educação. Indaiatuba, SP: Villa das Letras, 2007, 7ª ed, p. 76.
(3) Para uma visão aprofundada desse processo, especialmente no estado de São Paulo, ver BUENO, M. S. S; MARTINS, A.M.; OLIVEIRA, C. Descentralização do Estado e municipalização do ensino – problemas e perspectivas. Rio de Janeiro, DP&A, 2004.
(4) TEIXEIRA, Anísio. A municipalização do ensino primário. In: Revista brasileira de estudos pedagógicos. Rio de janeiro, v. 27, n.66, abril/junho de 1957. pp. 22-43. À Disposição em texto integral na Biblioteca Virtual Anísio Teixeira: www.prossiga.br/anisioteixeira
(5) Para mais informações sobre o Fundeb, ver neste link: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=799&Itemid=839

Magda Medeiros Furtado é professora do Colégio Pedro II (RJ), Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ.